terça-feira, 21 de julho de 2009

Memória do Samba Paulista







Nesta semana acontece o lançamento de um trabalho maravilhoso: uma série de doze CDs da coleção Memória do Samba Paulista. Serão lançados esta semana os primeiros quatro, que chegam ao mercado pela associação das entidades culturais Kolombolo Kolombolo e Sambatá, distribuído pela Tratore e com produção dos músicos T. Kaçula e Renato Dias.





Sambatá é uma entidade sem fins lucrativos que tem como propósito preservar e difundir a ascendência africana como fator determinante no universo da cultura brasileira. É dirigida pelo músico Guga Stroeter e pela produtora Gisela Moreau. Kolombolo visa divulgar o samba paulista como uma das identidades do seu povo e, para isso, desenvolve atividades culturais e educativas que têm como centro a arte e a conquista da cidadania. É liderado pelo músico Renato Dias, a produtora Lígia Fernandes e o historiador Max Fraoendorf.


Os próximos lançamentos são os discos da Velha Guarda da Vai-Vai, da Nenê de Vila Matilde, da Rosas de Ouro e da Vila Maria e também dos compositores Ideval e Zelão.


Abaixo um pouco sobre cada CD:


Embaixada do Samba Paulistano
– Fundada em 1995, na sede da União das Escolas de Samba Paulistanas, numa iniciativa de Mestre Gabi, Toniquinho Batuqueiro, Hélio Bagunça, Paulão da Lapa e Fernando Penteado, para preservar aspectos do carnaval paulistano. Entre outras atividades, a Embaixada é responsável por indicar e avaliar os possíveis candidatos a Cidadão e Cidadã do samba de São Paulo, um concurso anual que acontece desde os anos 70. Hoje tem mais de 20 integrantes de diferentes Velhas Guardas de São Paulo.

No repertório do CD, O Samba através dos Tempos – Biografia do samba (Talismã e Tabu), Meu sabiá (Mestre Feijoada), Cabaré (Ideval e Zelão), Avanço da tecnologia (Paulão da Lapa e Wilson Passarinho) e um pot-pourri com uma série de sambas de bumbo, uma das raízes do samba paulista.


Velha Guarda Unidos do Peruche
- A zona norte de São Paulo concentra grande número de agremiações carnavalescas, mas nem sempre foi assim. Na década de 40, lembra Carlos Alberto Caetano, o Carlão do Peruche, fundador da escola, havia apenas uma escola de samba no Parque Peruche, a Ritmos do Morro. Moradores da Casa Verde, Limão e Parque Peruche, se quisessem participar das grandes festas e desfiles, precisavam sair do bairro para ir até as escolas Lavapés, Garotos do Itaim e Campos Elíseos, por exemplo.

Carlão participava ativamente da Lavapés até desentender-se com a diretoria da escola e fundar, em 1955, a sua Unidos do Peruche. No CD, intérpretes se revezam para mostrar obras e relembrar os baluartes que fizeram história nessa comunidade, dentre eles, Geraldo Filme (Tradição e Festas de Pirapora), Carlão do Peruche (Repicar dos Tamborins), Geraldo Filme e Narciso Lobo (Avante Mocidade) e Fernando ‘Cabelo’ (Argumento).


Tias Baianas Paulistas
- O grupo foi idealizado por Valter Cardoso, o Valtinho das Baianas, entre 1994 e 1995, com integrantes das escola Nenê de Vila Matilde, Camisa Verde e Branco e Vai Vai, com o objetivo de valorizar a história e o papel das baianas nos desfiles e no dia-a-dia das agremiações.

Ao mesmo tempo, Valtinho possibilitou ao grupo ter um espaço para desenvolver atividades à parte das escolas, onde as Tias Baianas pudessem mostrar suas habilidades pessoais, aprender mais sobre suas funções no carnaval, discutir as condições de desfile, promover apresentações como um grupo vocal e um símbolo do samba.


No repertório, Samba sem sambista (Thiago Barroca), Marinheiro Só (Caetano Veloso) e Bumbo de Pirapora (T. Kaçula e Renato Dias).


Toniquinho Batuqueiro
– Nascido Antônio Messias de Campos, em 1929, em Piracicaba (SP), foi lá que ganhou o nome artístico e também aprendeu com tambuzeiros e curuzeiros sobre batucada, ginga e verso. Aos 10 anos, veio morar na zona norte de São Paulo (Parque Peruche), onde, mais tarde, conheceu outros sambistas e passou a circular em rodas de samba e de tiririra, principalmente no centro da cidade, onde trabalhava como engraxate.

Sua originalidade e a de seus contemporâneos, como Geraldo Filme e Zeca da Casa Verde, foi reconhecida pelo escritor e dramaturgo Plínio Marcos, que os convidou para fazer a trilha sonora dos espetáculos Balbina de Iansã (1970) e Plínio Marcos em Prosa e Samba – Nas Quebradas do Mundaréu, lançados em LP posteriormente.


Além de seu samba com forte influência da música rural, Toniquinho obteve sucesso como compositor de sambas de quadra e de enredo. Fez história na Rosas de Ouro, Unidos do Peruche e Unidos de Vila Maria.


A vivência com o samba paulistano, mesclada ao sotaque rural de sua música, compõem o repertório deste seu primeiro disco solo, que tem músicas próprias como Marra no mourão, Ditado antigo, Pé de serra, A pontinha, Sá dona (esta em parceria com Geraldo Filme).


Notem a barbaridade: um compositor do naipe de Seu Toniquinho Batuqueiro, aos oitenta anos, não ter um CD solo... felizmente isso mudou. Parabéns a todos os responsáveis por esse
belíssimo projeto.


Shows:


23/07, quinta, 21 h - Embaixada do Samba Paulista

24/07, sexta, 21 h – Velha Guarda da Unidos do Peruche
25/07, sábado, 21 h – Tias Baianas Paulistas
26/07, domingo, 19h30 – Toniquinho Batuqueiro


Ingressos: R$ 16; R$ 8 e R$ 4. Faixa etária: 12 anos – Sesc Santana: Av. Luiz Dumont Villares, 579, tel. (11) 2971-8700.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A roda de samba e de saberes

Retirado do Jornal da UNICAMP



Músico mostra origem, organização e rituais
de grupos de resistência ao pagode midiático




Na década de 1990, ao mesmo tempo em que o samba ganhava grande inserção nos meios de comunicação de massa – transformando-se no que hoje é rotulado de pagode midiático –, surgiam grupos de resistência para lembrar que o gênero está carregado de memória a ser preservada. “O pagode não deixa de ser samba, mas o que vemos é uma diluição da sua temática, como a banalização do amor. O negro sempre usou o samba para falar dos seus problemas na sociedade, e também do amor, mas com dignidade”, afirma Eduardo Conegundes de Souza.

Violonista e cavaquinista, Eduardo, o Edu de Maria, é autor da dissertação de mestrado “Roda de samba: Espaço da memória, educação e sociabilidade”, apresentada na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, com a orientação da professora Olga von Simson. Na pesquisa, ele mostra a importância das rodas de samba no resgate das tradições e da memória cultural em dois núcleos da periferia da Grande São Paulo: o Morro das Pedras, no bairro São Mateus, e o Projeto Nosso Samba, em Osasco.

“Meu trabalho não trata do samba enquanto gênero musical, mas como manifestação cultural. Nas rodas de samba as pessoas se encontram em torno da música e também da comida, da dança e do próprio debate sobre o gênero. Por isso menciono a sociabilidade”, explica Edu de Maria, que participou da criação em Campinas do Núcleo de Samba Cupinzeiro, ligado ao Centro de Memória da Unicamp (CMU).

O Cupinzeiro, segundo o músico, desenvolve um trabalho relacionado com a educação não-formal, preocupado com a transmissão da memória do samba. “Quando formamos o núcleo ainda não conhecia essas comunidades, que têm uma atuação semelhante. Fiquei atraído com o diálogo entre as pessoas na roda. Elas não se reúnem para cantar, tocar e dançar por puro entretenimento, também têm a intenção de transmitir o conhecimento”.



Acesse: Núcleo de Samba Cupinzeiro



Edu de Maria explica que o samba, sendo uma manifestação que vem desde o período colonial, traz muito da memória afro-brasileira, remetendo o tempo todo a esta tradição, seja nas letras ou na própria manifestação em si. “O samba se constitui de formas variadas que resultaram de determinados contextos sociais. Temos os negros que chegaram à Bahia e ali desenvolveram suas tradições, assim com os que aportaram no Sudeste e passaram por outras formas de convívio”.

Na dissertação, o músico discorre sobre o chamado samba rural paulista, caracterizado por manifestações que ainda se mantêm. Uma delas é o samba de bumbo, marcado pelo tambor que lhe dá o nome, versos de improviso e duas fileiras de integrantes que dançam em conjunto. “Seus integrantes denominam essa manifestação como samba de roda, embora este seja um termo recorrente para o samba da Bahia”.

Também é próprio do Estado de São Paulo o batuque de umbigada. O samba é marcado pelo tambu, um tambor escavado em tronco de árvore e tocado com a matraca (dois pedaços de madeira), e ainda pelo quinjengue, tambor em forma de taça. Outra manifestação tradicional, o samba-lenço, é uma variação do samba de bumbo, mas com um dançar diferente, em que cada participante traz um lenço que orienta a coreografia.

“Vemos então que existe uma ligação com o samba da Bahia, que chega a São Paulo para gerar formas híbridas de manifestação”, observa Edu de Maria. A hipótese para justificar esta mistura, de acordo com o músico, é a ocorrência de um grande fluxo de negros do Nordeste para cá, depois da proibição do tráfico de escravos da África em 1850. “Aqui já havia o jongo, vindo com os primeiros africanos à região”.

Repertório – Envolvido desde a graduação com projetos de educação musical, Edu de Maria quis comprovar na pesquisa que grupos como o Morro das Pedras e o Projeto Nosso Samba formam espaços de educação não-formal – aquela que não fica na mera informalidade, pois possui determinado grau de intencionalidade na transmissão e sobretudo na construção do conhecimento.

“A educação não-formal não se opõe à escolar, mas difere nos modos de organização e sistematização dos saberes, com a valorização da oralidade, sendo guiada por tradições locais ou próprias de uma determinada cultura, ocorrendo em espaços não escolares”, diz o autor. Ele acrescenta que presente, passado e futuro se interligam nos rituais das rodas de samba, numa relação marcada pela memória e ancestralidade.

Na pesquisa, o músico presenciou as reuniões e entrevistou as lideranças para investigar a motivação, a origem e a organização dos grupos. “Queria entender até que ponto os integrantes tinham a consciência e a intenção de transmitir a memória do samba. Eles se preocupam em mostrar o negro no papel de formador de uma cultura, neste momento em que a referência, para um menino da favela, é o pagodeiro ou o jogador de futebol numa posição de ascensão social, dirigindo um carro importado”.

Segundo Edu de Maria, os grupos escolhem o repertório a partir de vinis produzidos em sua maioria no período que vai da década de 1920 até a de 1970. Eles também colhem depoimentos de antigos sambistas, ouvindo suas histórias e buscando músicas que nunca foram gravadas. “A roda de samba tem quatro horas de duração, o que pede um repertório enorme, que faz parte do patrimônio do samba brasileiro. Muita coisa inédita é cantada nas rodas”.

Som acústico – A apresentação dos grupos é totalmente acústica e o Morro das Pedras, por exemplo, chega a reunir quase trinta integrantes sentados em roda, sendo que todos precisam conhecer as músicas. “O fato de todos cantarem juntos dá uma força muito grande à manifestação. O nome do compositor é sempre citado na roda e, quando possível, conta-se a história e o contexto em que a música foi feita. É um trabalho de pesquisa e de troca para que o conhecimento seja socializado”.

O público é atraído aos eventos por meio da divulgação boca a boca. Em dias comemorativos, como no aniversário do Morro das Pedras, o ginásio chegou a receber mil pessoas. “O público entende a proposta e assiste à apresentação concentrada. São raras as interrupções por causa de ruídos na platéia”.

A formação dos grupos de roda de samba também é eclética, diferentemente de movimentos como o funk, o rap e o hip hop, claramente voltados para determinado estrato social. Nas rodas juntam-se crianças e idosos, universitários e gente da comunidade. “Geralmente, os líderes são aqueles com maior escolaridade, que acabam descobrindo o papel social dessas manifestações. Mas o papel dessas lideranças é definido também por uma vivência anterior, seja numa escola de samba, seja numa folia de reis”.



Samba rural paulista


Foi Mário de Andrade quem cunhou a expressão “samba rural paulista”, na década de 1930, a partir das festas de Bom Jesus de Pirapora, que concentravam grupos vindos de diversas regiões do Estado, inclusive da capital. Muitas daquelas manifestações, que seus praticantes chamavam de sambas de roda ou de batuques, originárias principalmente das fazendas de café, acabaram reproduzidas no meio urbanizado.

Em sua dissertação, o músico Edu de Maria questiona se não é preciso relativizar a abordagem do samba como sendo uma prática prioritariamente do Rio de Janeiro, onde o gênero realmente nasceu no asfalto e se transformou na manifestação urbanizada que conhecemos hoje. “A partir do Estado Novo de Vargas, o samba foi manipulado ideologicamente, sendo inserido nas ondas do rádio como gênero capaz de contribuir para a construção de uma identidade nacional”.

Citando o sambista Osvaldinho da Cuíca, o autor do trabalho ressalta que outro fator, a forte repressão sofrida pelo negro na sociedade paulistana, contribuiu para apagar do samba paulista muito de suas características regionais. “Além disso, o samba carioca teria encontrado melhores condições de se manter e de transmitir sua memória, difundindo-a por todo o país, em função de a cidade ter sido sede do Império e, depois, capital na República”.

Fundo de quintal – Chegando ao período mais recente, no capítulo “Do samba maxixado ao pagode”, Edu de Maria conta como o grupo Fundo de Quintal, cujas raízes estão nas rodas de samba do bloco Cacique de Ramos, também acabou absorvido pela mídia. “Na década de 80 houve a aproximação de pessoas envolvidas com os meios de comunicação, como Beth Carvalho, a ‘rainha do samba’, que gostou do jeito diferente de tocar do Fundo de Quintal e praticamente adotou o grupo”.

Na opinião de Edu de Maria, o Fundo de Quintal criou uma nova estética do samba, recorrendo, por exemplo, ao repique de mão. “É uma sonoridade fácil de captar em estúdio, assim como o tantam, que substitui o surdo de marcação. Naquela época, tudo o que se gravava de samba tinha o acompanhamento do grupo”.

Foi neste cenário que começaram a surgir os núcleos de resistência paulistas, reunindo as pessoas em torno do samba de tradição. Entre os principais estão o Morro das Pedras, o Nosso Samba e o Samba da Vela. “Esses grupos surgem não para pensar o passado como algo congelado, mas para recriá-lo, retomando uma trajetória que foi drasticamente alterada nas décadas de 70 e 80, com a influência da indústria cultural”.


terça-feira, 2 de junho de 2009

A Magia do Violão


Publicado na



Por CECÍLIA PRADA



Do popular ao erudito, ele fez história na música brasileira


Quando o major Policarpo Quaresma, homem respeitável e respeitador, saiu pela primeira vez de casa empunhando um violão para tomar aulas, foi um escândalo só, cochichado de porta em porta no pacífico bairro carioca em que morava, naqueles tempos do governo de Floriano Peixoto. Era também o sintoma do triste fim que o personagem teria, no romance de Lima Barreto. Nacionalista ferrenho, o major tinha suas razões para adotar o instrumento – considerava o violão a mais autêntica expressão da alma brasileira.

O que de nenhum modo seria possível prever, naquela época, é que o violão, de obscuras origens, realmente tomaria ruas e salões e passaria da atmosfera dos botecos e vielas às salas de concerto. E que tanto na MPB como na música erudita brasileira, meio século mais tarde, já começaria a se impor internacionalmente, pelo brilhantismo de seus intérpretes e compositores.


Um pouco de história


O modelo do violão moderno só foi criado nos últimos anos do século 19 pelo luthier espanhol Antonio Torres e vem sendo aperfeiçoado ou modificado pelas exigências dos grandes instrumentistas. Para Andrés Segovia, por exemplo, foram construídos modelos com uma caixa acústica maior – origem do instrumento que hoje é usado nos solos com orquestra sinfônica.

No entanto, pesquisas arqueológicas e estudos como o de Isaías Sávio, publicado em 1964, mostram que já na Antiguidade havia instrumentos rudimentares, parecidos com o violão, e que foram encontrados entre os hititas – povo que viveu na Síria setentrional por volta de 1900 a.C. E também na Babilônia e no antigo Egito.

Na Idade Média a guitarra, antecessora direta do violão moderno, já era muito difundida na Europa, e em fins do século 14 era usada até nas catedrais inglesas, francesas e espanholas. No século 17 ganhou bastante espaço na França, onde chegou a ser o instrumento predileto do rei Luís XIV. Compositores como Jean-Baptiste Lully (1632-1687) já escreviam para o instrumento. No período barroco, foi a Itália o centro da música guitarrista. Nos séculos 18 e 19 seu uso expandiu-se na capital da música da época, Viena, e Franz Schubert, que se dizia pobre demais para comprar um piano, fez muito uso da guitarra e compôs para ela. O grande virtuoso do violino, Niccolò Paganini (1782-1840), era também exímio guitarrista.

Mas foi na Espanha que se desenvolveu a grande escola de composição e técnica de Francisco Tárrega (1854-1909), cuja influência ainda se faz sentir até hoje, quer na escola espanhola quer na de três países da América do Sul: Brasil, Uruguai e Argentina – seus discípulos Andrés Segovia (1894-1987) e Miguel Llobet (1875-1938) aqui estiveram várias vezes, até por períodos prolongados, e influenciaram de maneira relevante a história do violão nesses países.

Segovia, ainda presente na memória de todos, pois viveu quase cem anos, excursionou por todo o mundo e teve toda a sua obra gravada. Em todos os lugares estimulou músicos a compor para o instrumento – entre eles Heitor Villa-Lobos e, numa outra geração, Turíbio Santos, no Brasil.


Do boteco à sala de concertos


É controversa ainda a história de como, exatamente, o violão teria chegado ao Brasil (ver texto). A maioria dos historiadores da música dá a sua chegada com os portugueses. Mas parece que de Portugal só nos veio realmente a viola, bem mais primitiva e diferente do violão atual – e que ainda permanece na música caipira do interior do país.

O certo é que durante todo o século 19 o violão foi considerado no Brasil um instrumento "vulgar", essencialmente popular, apropriado somente para acompanhamento. Mas já nas primeiras décadas do século 20, alguns precursores tentavam introduzi-lo como instrumento solista. Os pesquisadores Paulo Castagna e Gilson Antunes, em artigo publicado em "Cultura Vozes" (nº 88, janeiro-fevereiro de 1994), citam a crítica do "Jornal do Commercio" do Rio de Janeiro, de 1916: "Debalde os cultivadores desse instrumento procuram fazê-lo ascender aos círculos sociais onde a arte paira" . Em outra ocasião: "A guitarra nasceu para o fado e o violão para a modinha. Uma e outro jamais lograrão alcançar a perfeição sonhada pelos seus cultores apaixonados ... As regiões da música clássica não lhes são propícias".

No entanto – ainda segundo Castagna e Antunes –, alguns meses mais tarde, no mesmo ano de 1916, a opinião do crítico do jornal mostrava uma mudança radical. O violão passa, subitamente, de primo pobre e malvisto a primo rico. E firma-se como um emergente, como se diria hoje.

O que se passava, na época, nos bastidores da vida cultural do país, em relação à música de violão? A resposta é fácil – a sociedade despertava para as possibilidades do instrumento, divulgadas especialmente pela grande turnê do paraguaio Agustín Barrios, que culminou nas apresentações triunfais no Teatro Municipal de São Paulo em 1917, e também pelo talento e pela originalidade da artista espanhola Josefina Robledo. No próprio país começavam a impor-se personalidades musicais como Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) – autor de Luar do Sertão, peça obrigatória até hoje nas exibições corais –, que se orgulhava de ser "o introdutor do violão na alta sociedade".

Incorporando a tradição da música popular e conduzindo-a ao status de arte culta, vários instrumentistas e compositores brasileiros da primeira metade do século 20 nos deixaram um legado precioso – como João Pernambuco (João Teixeira Guimarães), Rogério Guimarães, provindo de abastada família campineira, e principalmente Canhoto (Américo Jacomino, 1889-1928) e Dilermando Reis (1919-1977).

Não se sabe exatamente onde Canhoto teria nascido. Alguns autores dizem que ele nasceu na Itália, outros, em São Paulo. Ele tinha uma maneira toda própria de tocar e já nos anos de 1912 e 1913 gravava 12 discos pela Odeon. Apresentava-se continuamente como solista ou com um conjunto próprio que incluía clarinete, trombone e cavaquinho. Foi chamado de "O Rei do Violão" e gozou de imensa popularidade, pois apresentava-se até nos cinemas, acompanhando o filme – como era moda naquela época do cinema mudo.

Quanto a Dilermando Reis, ganhou fama atuando no rádio, de 1935 até o final da década de 60. Influenciou todo o povo e nos deixou mais de 300 composições gravadas, até hoje obrigatórias no repertório do gênero. O violonista Turíbio Santos, que é filho de seresteiro, costuma contar com orgulho que iniciou sua carreira tocando valsas de Dilermando Reis. O mais interessante é que Dilermando, artista tão consagrado, não conhecia música. Tocava e compunha "de ouvido".

O violonista e historiador Genésio Nogueira, no livro Sua Majestade o Violão (citado por Francisco Araújo), estabelece um ousado paralelo entre as figuras de Dilermando Reis e Andrés Segovia: "... para o mundo, encontraremos um substituto para Segovia, mas para o Brasil Dilermando Reis é insubstituível".


"Merece uma estátua"


É o que se diz, unanimemente, do músico e professor Isaías Sávio, o introdutor do ensino do violão clássico nos conservatórios brasileiros. Nascido no Uruguai em 1900, foi aluno de Miguel Llobet, o grande discípulo e continuador da obra de Francisco Tárrega. Em entrevista à revista "Visão" (8 de novembro de 1976), dizia Sávio: "Quando aqui cheguei, em 1931, ninguém tocava violão por música, não havia programas, não se publicavam músicas. Canhoto era o grande violonista da época, mas nunca se falara em violão clássico".

Sávio criou a primeira cadeira de violão no Conservatório de São Paulo, organizou currículos, formou os melhores profissionais do país e permaneceu como professor e pesquisador até sua morte, em 1977. Dele disse o grande violonista Antônio Carlos Barbosa Lima, de renome internacional: "Todo violonista no Brasil, direta ou indiretamente, tem influência do Sávio, porque ele foi o pioneiro, o desbravador do violão no Brasil".

É claro que, nesse quadro que analisamos, a figura de Villa-Lobos (1887-1959) ressalta pela excepcionalidade – já em 1912 ele escrevia a primeira partitura para violão clássico no Brasil, a Suíte Popular Brasileira, seguida na década de 20 pelos Doze Estudos Dedicados a Segovia, pelos Cinco Prelúdios para Violão e pelos Choros – entre outras peças. Mas sua obra foi sempre mais divulgada no exterior, na Europa e nos Estados Unidos, mais preparados, na época, para a sua genialidade. A partir da Semana de Arte Moderna de 1922, o compositor se voltou para a pesquisa do folclore brasileiro, conviveu com o povo e conseguiu integrar de forma única as duas vertentes culturais – européia e sul-americana – a que pertencia.

Com o desenvolvimento de toda uma geração de violonistas brasileiros – na maior parte formada também no exterior –, a música de outros compositores que escreveram para o violão, como Edino Krieger, Marlos Nobre, Francisco Mignone, José Antônio Resende de Almeida Prado, pôde rapidamente atingir, durante as décadas de 60 e 70, fama internacional.



MPB pede passagem

Amantes da música se reúnem por prazer


A recriação de uma Rua do Choro bem no coração da "cracolândia" – o bairro da Luz, no centro de São Paulo – desde o final do ano passado recebe o apoio oficial do governo do estado e faz parte do plano geral de recuperação da região central da cidade. Um plano que foi iniciado com a criação da Sala São Paulo, atual sede da Orquestra Sinfônica Estadual, na antiga Estação Júlio Prestes, e com a reforma da Pinacoteca do Estado. E que vai prosseguir com a fundação de um centro cultural e escola de música no edifício projetado por Ramos de Azevedo que por muitos e inglórios anos abrigou o antigo Dops, e com a restauração, já em curso, da Estação da Luz.

Após marcar presença na Rua João Moura, em Pinheiros, de 1983 a 1989, com espetáculos de arromba que reuniram sempre os mais famosos músicos e cantores do gênero, os "chorões" paulistanos haviam se dispersado pela cidade, seguindo bem a característica do estilo. Como dizia Jacó do Bandolim, afinal o choro devia ser executado na informalidade, na roda de amigos, no quintal da casa. Em um fim de semana, à tarde, com os músicos chegando, de pijama até, reconhecendo os companheiros, introduzindo os novatos, se esquecendo madrugada adentro no improviso e na amizade.

Mas, durante esse tempo todo, um lugar na cidade abrigou chorões, sambistas, pagodeiros, cantores – e o seu público. Um local tradicional, um nome que é passado de boca em boca e valorizado por amadores e profissionais – a loja de instrumentos musicais A Contemporânea, na Rua General Osório, número 46. A rua que passa a ser também, de ora em diante, a Nova Rua do Choro.

Fundada há 48 anos por Miguel Fasanelli, que é também fabricante e exportador de instrumentos, a loja há várias décadas se tornou ponto de encontro obrigatório de instrumentistas e cantores. Diz Fasanelli: "Logo depois da inauguração, em 1954, os músicos foram chegando e dando canja. Aqui ninguém paga para assistir, ninguém ganha para tocar. Todos os músicos famosos passaram por aqui, os maiores nomes. O pessoal do Rio de Janeiro sempre vem aqui. Cartola foi um dos primeiros, sempre vinha sem violão, pegava um emprestado e ficava tocando. Assim como outros nomes: Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Jacó do Bandolim..."

Os retratos que cobrem as paredes atestam com seus autógrafos, estabelecem um diálogo de classe entre músicos, amantes do samba, do pagode, de tantos gêneros. Nos fundos da loja, um espaço fechado de uns 20 metros quadrados, com uma parede de vidro que lhe dá jeito de aquário, abriga todos os sábados a confraria musical. Bandolins, cavaquinhos, violões, flautas, pandeiros... o que houver. Os músicos começam a chegar logo cedo. "Há gente que espera desde as sete e meia que a loja abra, o que acontece às nove", diz Fasanelli. Cumprimentam-se com grandes abraços, extravasam a saudade dos que há muito não se revêem, uma fraternidade. Se aboletam, se revezam, a música não pára, para júbilo da platéia, que se acomoda como pode nos bancos de madeira ou de pé. Os que não cabem no espaço exíguo ficam de fora, olhando pelo vidro. "Não quero ampliar esse espaço para não perder o clima íntimo", explica o dono da loja.

Temos a impressão de estar numa pequena nave que nos leva a tempos remotos e românticos. Com a chegada, obrigatória, de Arnaldinho do Cavaco, pulsam sambas, choros, serestas. No decorrer da manhã aumenta a platéia, vão chegando conjuntos, logo será a hora do pagode, na rua, em torno de uma mesa. O conjunto Clube do Pagode, sacudindo tamborins, cantando músicas "do tempo da escravidão" – coisas antigas, persistentes, preservadas, de compositores famosos. Como explica o músico Caçula, abrindo um sorriso largo na face: "A gente vai defendendo a música brasileira. A televisão não deixa, mas a gente faz o que pode".

Para os que têm fome e são chegados a uma boa feijoada, é só atravessar a rua para se fartar no Restaurante Première. Na rua animada, o samba de raiz pede passagem, lá por volta das 14 ou 15 horas. Visitantes de longe se animam e exibem passos de dança – como Vera Soares, de 55 anos, veterana da Mangueira, que vem do Rio para sambar em São Paulo. Fasanelli e os sobrinhos Sérgio e Roberto Guarilha, que trabalham com ele, passam entre os vários grupos, apresentações são feitas – "Você conhece o Adãozinho, que jogava no Corinthians?"

Antes, no final do expediente da loja, o samba era transferido para o bar e não tinha hora para acabar. Agora, a partir das 16 horas começa a fremir a música pelos alto-falantes do grande palanque armado pela Secretaria Estadual de Cultura. Na Rua do Choro, recuperada, a multidão vai se reunindo, animada, e a MPB triunfa, como uma demonstração de criatividade, alegria e espontaneidade do povo brasileiro.


sábado, 9 de maio de 2009

Batuqueiros da Paulicéia

Publicado no ESTADÃO.COM.BR


Por Francisco Quinteiro Pires





O samba de São Paulo sofre de carência. Ele sente a falta de uma bibliografia. Por ser vítima, sabe bem que, quando o passado depende apenas da transmissão oral, a história corre um risco maior de manipulação. Em Batuqueiros da Paulicéia, André Domingues e Osvaldinho da Cuíca contrariam esse fato ao aliar um "relato afetivo", baseado em memórias, ao material consolidado por estudos fundamentais como O Samba Rural Paulista, do modernista Mário de Andrade.


link Ouça Grupo da Barra Funda

"Quando conversei com o Osvaldinho para o livro, pensei que ele falaria de grandes artistas e seguiria a trajetória consagrada da MPB", diz o pesquisador André Domingues, de 32 anos. "O que ele me contou são detalhes essenciais resgatados por uma memória cercada pelo afeto." Mesmo narrada em primeira pessoa, a obra não se perde na subjetividade ao falar do samba paulista, "um buraco negro" para os pesquisadores.

As entrevistas com o sambista começaram em 2003. Osvaldinho passava por sessões de quimioterapia para tratar um câncer na garganta. Domingues diz que os excluídos da história oficial gostam de romantizar suas trajetórias - têm a necessidade de elevar seus feitos. Segundo ele, em nenhum momento Osvaldinho da Cuíca, de 69 anos, afirmou ser um dos grandes batuqueiros de São Paulo. "Mesmo se tivesse tentado, eu não deixaria que ele puxasse a sardinha", brinca.

Batuqueiros da Paulicéia (Barcarolla, 216 págs., R$ 34) será lançado em quatro shows no Sesc Pompeia, entre hoje e domingo. Foram chamados músicos que representam diferentes momentos do gênero: Carlão do Peruche, Germano Mathias, Thobias da Vai-Vai, Bebeto, Wandi Doratiotto, Celso Viáfora, Bebeto, Fabiana Cozza, Quinteto em Branco e Preto.

A obra se divide em duas seções - Samba de Rua e Samba Profissional. Ela questiona a ideia, hoje consensual, de que o samba-de-bumbo da cidade de Pirapora do Bom Jesus é a semente do samba paulista. Apesar de ser um balaio que reuniu os diversos ritmos trazidos por romeiros, ele é apenas um dos elementos a formar o gênero. 

Para entender o "samba autenticamente paulista", é preciso lançar um olhar múltiplo no tempo e no espaço. O gênero mescla influências do samba rural do século 19, da batucada de trabalhadores braçais no Largo da Banana (hoje região do Memorial da América Latina) e dos engraxates do centro, nas primeiras décadas do século 20.

Os autores lembram a importância do rádio, a partir dos anos 1920, na transmissão do samba carioca. A obra aborda o carnaval paulista, marcado pela solidariedade e intrigas. Começando pela marcha sambada dos cordões, ele ressalta a oficialização do carnaval em 1968 como o ponto em que o gênero perde suas particularidades, assemelhando-se ao carioca. O bumbo era substituído pelo repinique e o tamborim, instrumentos que aceleraram o andamento. Em 1972, com o fim dos cordões, acabou o samba autenticamente paulista, segundo Osvaldinho. "Hoje ele não existe mais", diz. "O samba tem uma forma única, que é a carioca."

Sem lamentar as perdas do passado, Batuqueiros da Paulicéia fala das transformações do gênero. Aborda o fenômeno do samba-rock nas boates da capital, a vanguarda paulistana e o pagode romântico dos anos 1990, que, para Osvaldinho, provocou o surgimento de grupos preocupados com o "samba de raiz". A rejeição ao novo contraria a essência de São Paulo que é a mesma do samba: o poder de incorporar a diversidade. 

Serviço

Osvaldinho da Cuíca. Sesc Pompeia. Choperia (800 lug.). R. Clélia, 93, 3871- 7700. 5.ª a sáb., 21 h; dom., 18h30. R$ 16


Depoimentos

"Tenho admiração profunda por Osvaldinho, um antropólogo do samba paulista. Ele é importante por atuar em três frentes: como compositor, percussionista e pesquisador. É autor de grandes sambas, tocou com muita gente e faz o resgate das memórias do samba, sobretudo o rural. Ele viveu as várias fases de transformação do gênero."

CELSO VIÁFORA
CANTOR E COMPOSITOR


"Ligado historicamente à escola de samba Vai-Vai, Osvaldinho é um grande ritmista, educador, pesquisador. Batuqueiros da Paulicéia é muito importante, porque somos carentes de uma bibliografia sobre o samba paulista, desde as suas origens. Ele é uma autoridade no assunto. Conheceu as personalidades que ergueram o gênero."

FABIANA COZZA
CANTORA

"Conheço o Osvaldinho há muito tempo, ele participou de vários programas Bem Brasil. É uma figura admirável. Ele é a história do samba paulista por ter convivido com gente como Geraldo Filme, Talismã, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Conhece muito o samba rural, e não tem preconceito com as novas vertentes."

WANDI DORATIOTTO
MÚSICO E APRESENTADOR

segunda-feira, 4 de maio de 2009

E no princípio, era a roda







Por Bruno Ribeiro



O samba já foi tema de centenas de livros que tentam explicar a sua história e o seu ritmo. Poucos, porém, foram além disso e aprofundaram aspectos pouco abordados deste riquíssimo gênero musical. No Princípio, era a Roda – Um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes (Ed. Rocco, 320 pág., R$ 35) veio completar esta lacuna e colocar o nome do jornalista e historiador carioca Roberto M. Moura entre os maiores estudiosos do samba na atualidade.

Fruto de uma tese de doutorado em Música para a UniRio, o livro parte do princípio de que a roda é anterior ao samba desde que o gênero nasceu na casa de Tia Ciata, na Praça Onze, no começo do século passado. O ponto de partida que o pesquisador usa para defender a tese é a oposição complementar entre "casa" e "rua", sugerida pelo antropólogo Roberto Da Matta – para quem a roda de samba simbolizaria a "casa" do sambista – onde se reproduziriam as relações mais íntimas e profundas – enquanto que a escola de samba representaria a "rua" – uma vez dominada pela política de apadrinhamento, pela troca de favores e pelo jogo do bicho. "Quando comecei a repetir que não é o samba que faz a roda, mas a roda que faz o samba, ouvi reações acadêmicas do tipo ‘quem disse isso?’, como se fosse uma heresia. Tive então a certeza de estar trabalhando em cima de uma idéia original", diz Moura, sem perder tempo na resposta aos críticos da academia: "Eu estou dizendo isso, depois de cem anos de bibliografia musical no Brasil". A maior contribuição que a obra do jornalista presta ao conhecimento que se tem sobre o samba é a de deixar bastante claras as diferenças entre roda de samba, samba e escola de samba – três entidades que existem autônomas, embora ainda andem juntas, na cabeça da maioria das pessoas. No livro, a divisão da história do samba em três etapas: a roda (fenômeno que criou as condições para o aparecimento do samba), o samba propriamente dito (como gênero musical) e a escola de samba (sua institucionalização). Moura conta como o sambista saiu das rodas para recriar nas escolas de samba a extensão de seu quintal. E de como retorna para a "casa", no momento em que as escolas tornam-se instituições voltadas para o dinheiro. Em meados dos anos 60, quando é implantada a "ditadura do samba-enredo" nas escolas, lugares como o bar Zicartola, espetáculos como o Rosa de Ouro e noitadas de samba no Teatro Opinião passam a aglutinar mais sambistas que todas as escolas de samba juntas. "Não é à toa que João Nogueira se afasta da Portela ao ser impedido de cantar um samba de meio de ano na quadra. Na ditadura das escolas, a partir de meados dos anos 60, só entra samba-enredo", comenta o pesquisador. Para entender o funcionamento de uma roda de samba, Roberto M. Moura propõe um retorno no tempo e traça uma linha cronológica que começa no quintal da Tia Ciata, passa por Cacique de Ramos e desemboca nas rodas da Lapa, feitas pela atual juventude carioca. O autor define a roda como "resultado da dialética entre o cotidiano e a utopia", capaz de instaurar no sambista "a ilusão da eternidade". Como constata a tese, a permanência da roda ao longo do século é explicada pela gama de sentimentos capaz de gerar entre seus participantes. "É como se, durante a roda de samba, "o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora". Quando a baiana Ciata abriu seu quintal, no Rio de Janeiro, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, não imaginava que este modelo de confraternização universal se tornasse a alma e a razão de sobrevivência de um gênero musical tradicionalmente perseguido – inicialmente pela polícia e depois pelo preconceito da sociedade. Apesar do aspecto aparentemente anárquico e espontâneo da roda de samba, o livro revela a existência de regras fundamentais para o seu bom funcionamento. Na roda a hierarquia é respeitada não pelo sucesso ou pelo dinheiro que a pessoa tem, mas por sua história dentro do samba. Segundo a obra, há formas e formas de ser aceito no universo da roda. A mais natural delas é cantando e tocando – mas não são formas exclusivas. Há quem fique apenas no coro e nas palmas e mesmo assim seja considerado "do ramo". Entre os simpatizantes, há quem cuide da cozinha e dos tira-gostos. Sobre as regras de aceitação, registra o autor: "Como em qualquer prática social semelhante, a roda também tem uma espécie de regulamento interno: não se pode ousar manejar um instrumento sem competência, falar mais alto do que o som que vem da roda (um papo discreto, no canto, mesmo uma paquera, nenhum problema), interromper quem está puxando o samba e, pecado venial quando o sujeito está se aproximando mas suportável quando ele já pertence ao grupo, puxar um samba e esquecer a letra pela metade". Apesar de ser fruto de uma tese de doutorado e envolver aspectos etnológicos, sociológicos e antropológicos, No princípio, era a roda, é um bate-papo informal, objetivo e rico. Assim como o samba.

_____________________________ Bruno Ribeiro é jornalista e escritor. Torcedor do glorioso São Cristóvão Futebol Clube, não deu certo como ponta-esquerda, não deu certo como poeta maldito, não deu certo como compositor de samba. Foi ser jornalista e escrever sobre os bares de Campinas. Segue o lema de Maiakóvsky: também acha preferível morrer de vodca a morrer de tédio. Há algum tempo é editor da seção de Artes da Revista Consciência.Net. Contato: bruno@cumbuca.com.br

terça-feira, 14 de abril de 2009

Força das comunidades mantém carnaval espontâneo na periferia de São Paulo






Antonio Carlos Quinto / Agência USP


Diferente dos grandes espetáculos que são exibidos na TV, o carnaval paulistano da periferia ainda mantém a espontaneidade e maior participação do público que o assiste. “Além disso, sem grandes recursos, as escolas de samba da periferia da cidade sobrevivem quase que exclusivamente do esforço de seus componentes, a maioria da própria comunidade”, avalia Nanci Frangiotti, que realizou o estudo O espaço do carnaval na periferia da Cidade de São Paulo, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Administradora de empresa por formação, Nanci resolveu estudar o carnaval após ter trabalhado no Parque Anhembi, empresa da São Paulo Turismo responsável pela organização da festa no sambódromo de São Paulo, e por participações em projetos na União das Escolas de Samba Paulistanas (UESP). “Enquanto a Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo organiza o carnaval das escolas maiores, as do grupo principal, a UESP é responsável pelos desfiles nos bairros com os grupos das escolas menores”, explica. 

O objeto de estudo da pesquisadora foi a Escola de Samba Valença Perus, localizada no bairro de Perus, na Zona Norte da cidade. “As escolas menores devem ter um número médio de 500 componentes”, lembra Nanci. Mesmo com um número reduzido de pessoas em relação às grandes escolas de samba, a pesquisadora destaca a união da comunidade em torno da realização do carnaval. Ela acompanhou toda a organização da Valença Perus no ano de 2005. No anos seguinte, em 2006, a agremiação desfilou no organizado pela UESP. 

“Enquanto nas escolas de samba maiores muitas pessoas são contratadas para idealizar e fazer o carnaval e existem patrocínios, nas escolas da periferia a participação popular é intensa. Não há contratação de costureiras, serralheiros e artistas plásticos, entre outros. Em geral, apenas o carnavalesco é contratado”, descreve. Nanci lembra que os baixos recursos destas entidades fizeram com que as comunidades aprendessem a reciclar os mais diversos materiais. “Incrível o que conseguem fazer com tampinhas de garrafa. Até lantejoulas!.” Todo o esforço da comunidade é recompensado posteriormente com a distribuição gratuita das fantasias. “Nas grandes agremiações, as fantasias têm de ser compradas pelos componentes”, ressalta Nanci, lembrando que somente os ‘destaques’ custeiam suas próprias fantasias. 

Espaço socializador 
A força da comunidade torna a escola de samba da periferia um espaço socializador de diversas atividades. “Ali se reúnem as famílias com suas crianças e existe uma constante troca de informações, desde uma indicação a um emprego até uma simples recita culinária entre as mulheres”, conta.

E é justamente esse espaço socializador que Nanci considera que poderia ser melhor aproveitado pelo poder público. “Ao contrário do que muitas pessoas podem imaginar, a violência registrada na periferia não atinge estes espaços. Há todo um código moral nas quadras das escolas, de maneira geral. Chegam a proibir consumo de drogas, por exemplo, e mesmo no entorno desses locais há o respeito da população”, destaca. “Ao invés de contruir novos espaços para atividades das mais diversas, a administração pública poderia entrar em acordo com estas comunidades e aproveitar estes espaços.” 

Samba no autódromo 
As escolas de samba da periferia realizam seus desfiles em alguns bairros da Capital, como na Vila Esperança, na Zona Leste, Butantã, na Oeste, e Interlagos, na Zona Sul. Neste último bairro, a pesquisadora chegou a se surpreender com a participação popular. “Quando ouvi dizer que o desfile deveria ser no autódromo de Interlagos, a primeira reação foi de espanto em ver a realização do carnaval num espaço tão distinto”, conta. Mas para minha surpresa, foi uma festa excelente e com grande participação do público nas arquibancadas do circuito.” 

Nanci diz que a participação do público é direta, justamente por não haver nos desfiles dos bairros estruturas tão rígidas como as que existem no espaço do sambódromo. “As pessoas ficam mais próximas, participam mais e se divertem mais”, avalia.

Segundo a pesquisadora, já é tradição da Valença de Perus desfilar pelo bairro na terça-feira de carnaval. Ela conta que o desfile acontece de forma que o público acaba participando integralmente da escola. “Numa das manifestações que acompanhei milhares de pessoas acompanharam o desfile numa grande festa”, lembra Nanci. Nos bairros, os regulamentos dos desfiles são praticamente os mesmos, mas segundo a pesquisadora, a escola por ter menos recursos não faz um carnaval tão vertical como acontece no desfile principal, com grandes carros alegóricos. “A diferença é que as escolas principais acabam sendo um produto de mídia, enquanto na periferia podemos dizer que ainda há o carnaval solidário e de maior participação popular.” A dissertação de mestrado de Nanci foi apresentada na FFLCH em agosto de 2007, sob orientação da professora Glória Alves.

Mais informações: (11) 9996-7283, com Nanci Frangiotti; e-mailnancifra@terra.com.br 

terça-feira, 10 de março de 2009

Capoeireiro - Capoeira, Pernada & Tiririca na Terra da Garoa

Crônica sobre Capoeira, com algumas informações sobre a Pernada de Sorocaba e a Tiririca da capital paulista, ambas uma espécie de "capoeira primitiva" do Estado de São Paulo
 
Jornal do Capoeira - www.capoeira.jex.com.br


 
Nota do Editor:
 

  À convite da Tribuna Metropolitana - um jornal quinzenal que circula nas zonas norte e sul da capital - tenho escrito algumas crônicas para uma coluna cujo título é Capoeireiro. O objetivo tem sido o de compartilhar informações e pontos de vistas sobre nossa Capoeira. No mês de Julho de 2005 publicamos uma crônica sob o título "Capoeira, Pernada & Tiririca na Terra da Garoa". Com o lançamento do Documentário "Pernada em Sorocaba - Ginga Pela Arte...Ginga Pela Sobrevivência", previsto para ocorrer dia 19 de Novembro de 2005 na Cidade de Sorocaba (SP), achei por bem republicar tal crônica também em nosso Jornal. É o que faço agora.

                Capoeiristicamente,

                Miltinho Astronauta


CAPOEIREIRO

Capoeira, Pernada & Tiririca na Terra da Garoa
Por Miltinho Astronauta - Julho/2005

Nota da Tribuna Metropolitana

Foi com imensa satisfação que inauguramos esta coluna Capoeireiro. Percebemos que amantes da prática da Capoeira - seja enquanto cultura, seja como esporte ou educação - já estão até colecionando nossas edições quinzenais. A seguir, respondemos algumas questões enviadas à nossa Redação: 1) nosso colunista desenvolve um trabalho de pesquisa do fenômeno da Capoeira em nosso Estado (Interior, Capital e Vale do Paraíba); 2) existe um projeto em andamento para cadastrar os mestres e capoeiras - dos mais antigos aos jovens mestres - das diversas regiões da Capital: Zona Oeste, Zona Leste, Zona Norte, Zona Sul e Centro; 3) interessados em colaborar com este projeto (Coletânea da Capoeira em São Paulo) podem escrever para nossa Redação, ou então enviar e-mail para o nosso Colunista. Como se diz na Capoeira, "vamos dar a Volta ao Mundo, Câmara...".

Outro dia, recebi uma carta eletrônica (e-mail) muito elogiosa sobre as duas primeiras edições de nossa recém-inaugurada coluna CAPOEIREIRO. Lá pelas tantas, nosso interlocutor perguntou: "Existiu, realmente, Capoeira em São Paulo antes da chegada dos baianos e cariocas na década dos 60?". De pronto lembrei-me de um corrido do Contra-mestre Pernalonga (Márcio Lourenço de Araújo), que hoje ensina em Bremen, Alemanha. "O meu barco virou / lá no fundo do mar / Se eu não fosse angoleiro / Eu não saia de lá". Foi exatamente assim que me senti. Ou seja, se não estivesse amparado por documentos, lá estava levando minha rasteira.

De pronto, resolvi então trazer à público uma abordagem interessante que fiz sobre uma forma de "Capoeira a Lá Paulista". Confesso, estava guardando o texto que ora apresento para um livro que estou escrevendo sobre a Capoeira de São Paulo. Mas para não deixar de "entrar na chamada" de nosso amigo Leitor, vamos então ao fio da meada.

1. CAPOEIRA GANHA O MUNDO

Hoje percebemos que o mundo todo se entregou aos encantos de nossa Capoeira. Ousaria dizer que nenhum esporte e/ou prática cultural levou tanto de um povo à outras nações como é o caso de nossa Capoeira.

Por exemplo, aqui no Brasil, praticamos o Box, o Judô e o Caratê, mas ninguém fala o inglês ou o japonês por conta disso. Dança-se o Balé e o Tango, mas não existem motivos para se especializar em Francês ou Espanhol.

Mas com a Capoeira é diferente. Por conta dela o português falado no Brasil tem sido falado em mais de 150 Paises. É isto mesmo! Segundo a Federação Internacional de Capoeira (FICA), presidida pelo Prof. Dr. Sérgio Vieira, nossa Capoeira já caminha para a segunda centena de paises onde a prática já faz parte do "cardápio" anual de eventos culturais e desportivos.

É até compreensível nosso português sendo falado neste "mundão de Deus", uma vez que seria muito superficial praticar a Capoeira sem, por exemplo, compreender o real sentido de uma Ladainha, de um Corrido ou de uma Chula.

Ao mesmo tempo em que percebemos nossa Capoeira expandindo-se, dando sua magistral "Volta ao Mundo", observa-se que mais e mais os praticantes (nacionais e principalmente do estrangeiro) estão buscando conhecer a verdadeira - e mais completa quanto possível - história da Capoeiragem.

2. CAPOEIRA, FOLCLORE & DINÂMICA

Prosa e Samba

É fato que a Capoeira praticada em nosso Estado de São Paulo é fruto de um trabalho de resistência e divulgação realizado por mestres baianos e cariocas, vindos para cá a partir da década dos 50. Embora, sendo justo registrar que a grande maioria chegou entre meados dos 60 e início dos anos 70.

Em nossa Crônica Inaugural apresentamos o depoimento em livro do Folclorista Alceu Maynard Araújo (1967) atestando que levas de capoeiras foram soltas nas pontas dos trilhos (na cidade de Botucatu, entre 1890 e 1920, supostamente). Pelo depoimento, podemos inferir que Capoeiras (vindos da Capoeira Carioca) já perambulavam por nosso Estado, no final do século XIX e início do século XX.

Por falar em Capoeira Carioca, todo bom estudioso da cultura popular sabe que as manifestações raramente ocorrem em regiões de forma isolada geográfica e temporalmente. Tanto é que Mestre Edison Carneiro (excelente folclorista!) fez questão de deixar bem claro no título de um de seus livros (Dinâmica do Folclore), que tudo acontece dinamicamente. Em alguns casos manifestações se fundem, resultando em novas manifestações. Por exemplo, com a proibição da Capoeira em Pernambuco, aliado a questões político-social da época, resultou-se nosso Frevo! O bom capoeira sabe perceber que a "malícia" do bom "frevista" está ligado à ginga de um bom Capoeira. E é isto que eram no passado: capoeiras. No Rio de Janeiro, a perseguição à capoeiragem (que, funcional e socialmente não é o mesmo que capoeira) resultou na Pernada Carioca. Digamos que era a Capoeira que não se chamava Capoeira, mas que tinha a eficiência da mesma, tanto enquanto luta, como também como lazer.

3. PERNADA, TIRIRICA & CAPOEIRA PAULISTA

Em São Paulo também tivemos nossa "Capoeira primitiva". Recentemente o historiador Carlos Carvalho Cavalheiro e o capoeira-pesquisador Joelson Ferreira têm se dedicado a estudar a Pernada de Sorocaba (interior paulista). Na essência, essa forma de manifestação tem todos os ingredientes básicos de nossa Capoeira: cantos (corridos e desafios); negaças; golpes desequilibrastes (rasteira!) etc. Em breve teremos um excelente documentário sobre o assunto. Aguardem.

 Além da Pernada de Sorocaba, na Capital Paulista, tivemos também uma outra "espécie de capoeira": a TIRIRICA. Aparentemente, tudo indica que, com a repressão de algumas manifestações (ai inclui-se a Capoeira, o Batuque e até mesmo a Religião Candomblé), o povo era obrigado a mascarar suas práticas, mudando formas de execução e nome de tais práticas.

A Tiririca Paulista era um misto de Capoeira com Samba. Era, então, uma capoeira com ritmo (diferente da Capoeira Utilitária do Paulista-Carioca Mestre Sinhozinho - Agenor Sampaio), mas sem a presença do Berimbau. Tinha canto de pergunta e resposta, e "jogava-se" ou "lutava-se ludicamente" em Roda.

Sobre esta "espécie de capoeira" (assim se referiam a ela os "mais antigos" da Terra da Garoa) temos alguns depoimentos relevantes gravados no Centro de Estudos Rurais (CERU) e Museu da Imagem e Som (MIS), ambos da Universidade de São Paulo (USP). Em São Paulo podemos encontrar ainda alguns praticantes remanescentes ou contemporâneos de praticantes, que acompanharam a TIRIRICA em seu auge (décadas dos 30 aos 50). Para dar uma dica, para quem estiver interessado em saber sobre a Tiririca, os bons nomes são Oswaldinho da Cuíca, Toniquinho Batuqueiro e Seu Nenê da Vila Matilde.

 O Próprio Mestre Ananias - renomado mestre da capoeira angola baiana - que chegou pela capital entre 1950 e 1960, vivenciou alguns momentos da Tiririca pelas bandas do Brás; Largo da Banana, ou mesmo pelas Praças da Sé e da República (reduto de muitos sambistas, tiririqueiros e capoeiras). Mestre Ananias é grande conhecedor de Samba de Raiz e de Capoeira. Eu arriscaria dizer que uma das cantigas que só ouvi mestre Ananias cantando (É tumba, menino é tumba...) pode ter sido "colhida" durante sua vivência com alguns praticantes da Tiririca. Faço tal suposição baseado em um documentário de Mestre Geraldo Filme (também cantador de Samba, e que conviveu com exímios jogadores de Tiririca), que em depoimento para o MIS, lá pelas tantas, soltou a letra da música que comento acima:

 

"É tumba, menino é tumba

É tumba pra derrubá

Tiririca faca de ponta

Capoeira quer me pega

Dona Rita do Tabulêro

Quem derrubou meu companheiro

...

Abra a roda minha gente

Que o Batuque é diferente

(coro)

Abra a roda minha gente

Que o Batuque é diferente"

Será que a origem é a mesma (Rodas de Tiririca)?



Miltinho Astronauta dedica-se, de forma independente, ao projeto "Coletânea da Capoeira em São Paulo". O projeto conta com a colaboração de alguns pesquisadores, dentre eles Raphael Pereira Moreno e Carlos Carvalho Cavalheiro. Para obter mais informações, acesse o Jornal do Capoeira (on line) www.capoeira.jex.com.br ou escreva para miltinho_astronauta@yahoo.com.br . A foto de Mestre Ananias é de Autoria de Adilene Cavalheiro.

Dez Discos do Samba Paulista

Retirado da Revista ZINGU

Por Matheus Trunk


“São Paulo, tu és o meu amor
Ontem tinha bonde
Hoje tem metrô”


(trecho da canção São Paulo e Seus Poetas de Astrogildo Silva e Marques Filho gravado originalmente por Noite Ilustrada no discoSamba Sem Hora Marcada de 1974 pela Continental Discos)


Aqui uma pequena seleção de dez grandes artistas da música popular que tiveram a “paulicéia desvairada” como palco de suas vidas e obras. Preferi não incluir compositores consagrados nos meios intelectuais e acadêmicos como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini para falar sobre personagens mais esquecidos.

Mauricy Moura - Roteiro Noturno - Continental (1955)
Além do samba tradicional, as noites da capital paulista foram palco de grandes intérpretes de seresta, valsa e samba-canção. Durante muitos anos, a voz aveludada de Mauricy Moura (1926-1976) foi referência nesses gêneros. Apesar de ser um extraordinário artista, Mauricy tinha uma personalidade muito forte. Talvez por isso, gravou somente dois discos: Coquetel da Vida e este Roteiro Noturno. Neste trabalho, demonstra um pleno domínio de um repertório bastante sofisticado de compositores como Orestes Barbosa, Wilson Batista, Lupicínio Rodrigues e principalmente de seu ídolo Sílvio Caldas.




Germano Mathias - Ginga no Asfalto - Odeon 
(1962)
Mandusca, Barra Funda, Catedrático do Samba e Marlon Brando do Pari são apenas alguns dos apelidos de Germano Mathias. Com uma carreira artística de 55 anos, o sambista paulista gravou diversos discos e fez um enorme sucesso. Um de seus melhores discos é este Ginga no Asfalto, gravado no auge de sua carreira pela Odeon. A capa já fala por si: de terno azul claro e sapato branco, o malandro paulistano desfila pelo centro da cidade. Neste disco, Germano consegue elevar o samba sincopado a patrimônio cultural em canções que colam no ouvido como Maria EspingardinaMulher Por AcasoBaile do Risca FacaLar Sem Pão e Requebrado Diferente. Obra-prima indispensável em qualquer coleção de discos de samba.


Jorge Costa - Samba Sem Mentira - Copacabana (1968)
Inexplicavelmente, o alagoano Jorge Costa (1922-1995) permanece esquecido. Extremamente talentoso, suas canções eram disputadas por artistas como Germano Mathias, Noite Ilustrada, Jair Rodrigues, Ângela Maria e até mesmo Nelson Gonçalves. A noite de São Paulo era seu habitat natural. Segundo a contracapa do disco, Jorge sempre era achado nas “boates e inferninhos paulistas”. O forte deste genial compositor eram os sambas sincopados como CastigueiFalso Rebolado e Baile do Risca-Faca. Como cantor, Jorge gravou dois raros LPs: este Samba Sem Mentira (1968) e Jorge Costa e Seus Sambas (1973). Samba Sem Mentira reúne canções sobre questão social (Inferno Colorido e Maria Simplicidade), dor-de-cotovelo (Não Me InteressaBandeira da Paz e Chave do Coração, esta última em parceria com José Domingos), candomblé (Tamborete da Vovó) e uma verdadeira obra-prima da canção popular (Triste Madrugada).

Nerino Silva - Deixe Comigo - RCA Victor (1968)
Sambista radicado na paulicéia bastante conhecido nos anos 50 e 60. Seu maior sucesso foi a canção bem-humorada Minha Sogra. Chegou a participar ao lado de Germano Mathias em uma cena do filme O Preço da Vitória (1959) de Oswaldo Sampaio. Infelizmente, Nerino gravou pouco e praticamente não existem informações sobre sua carreira. Seu álbum mais conhecido é este Deixe Comigo gravado na major RCA Victor em 1968, com uma capa psicodélica. No repertório, canções de Zé Kéti (Amor de Carnaval), Lupicínio Rodrigues (Dona Divergência) e Gordurinha (Súplica Cearense).





Noite Ilustrada - Não Me Deixe Só - Continental (1978)
Mário de Souza Marques Filho (1928-2003) é um dos maiores cantores da história da música brasileira. Com o pseudônimo de Noite Ilustrada, ele se tornou o imperador das noites paulistanas. Ele era o rei das boates Meninão, Jogral, Pierrot, Lé-Bar-Bar, Kings Bar e Capitan´s Bar. Seu nome era sinônimo de grandes apresentações, profissionalismo e de sambas bem cantados. Difícil é escolher um único disco deste grande mago da canção. Selecionei o emocionante Não Me Deixe Só, lançado originalmente em 1978 pela gravadora Continental. No lado A, Noite fala sobre a questão social (As Flores do Mal), regrava um sucesso do passado (Idade de Fazer Bobagem), comenta os imprevistos da vida (Atalhos) e homenageia o mestre Ataulfo Alves (Homenagem). No lado B, faz dueto com Hebe Camargo para homenagear a amiga Isaurinha Garcia (no pot-porri Mensagem e A Outra Mensagem), faz referência a uma casa de boas moças do Nordeste (Dona Maria Boa) e fala sobre a solidão (Não Me Deixe Só e Ai! Que Saudades da Casa Amarela).

José Domingos - Quando Eu Me Chamar Saudade - Chantecler (1979)
Cantor de grande talento, José Domingos sempre recebeu pouco reconhecimento pela crítica especializada.Quando Eu Me Chamar Saudade é seu segundo LP que contou com produção de Luiz Mocarzel e arranjos do maestro Aluísio Pontes. Além de conter músicas próprias do cantor (como Mais Uma Vez AdeusQuem Sabe de MimGarrafa Vazia e Chave do Coração, esta última em parceria com Jorge Costa) este belo disco contém sambas de compositores consagrados como Ataulfo Alves (Caminhando), Paulo Vanzolini (Praça Clóvis e Ronda), Dora Lopes (Pedra Noventa) e Nelson Cavaquinho (Quando Eu Me Chamar Saudade). Este trabalho de José Domingos é um passeio pelas boates e bares da São Paulo dos anos 60 e 70. Absolutamente imperdível.

Geraldo Filme - Geraldo Filme - Estúdio Eldorado (1980) 

A importância de Geraldo Filme (1928-1995) para o samba de São Paulo é semelhante a importância de Cartola para o samba do Rio de Janeiro. Amigo de personalidades como o poeta Solano Trindade e o dramaturgo Plínio Marcos, Geraldão da Barra Funda sempre foi um líder entre os bambas da paulicéia. Sua paixão pela Vai-Vai está eternizada em dois verdadeiros hinos da escola como Tradição e Silêncio no Bexiga, ambas presentes neste disco. Outras grandes canções do LP: História da CapoeiraVai Cuidar da Sua Vida e Reencarnação. Uma pena que um monstro sagrado da música brasileira como Geraldo Filme tenha gravado tão pouco.



Kazinho - O Samba Como Ele É - Popular Brazil (19??)
O paraense Oscar Azevedo dos Santos, o Kazinho é um dos grandes compositores do samba paulistano. Durante muitos anos, ele fez canções para nomes como Ciro Monteiro, Demônios da Garoa, Germano Mathias, Noite Ilustrada e Ari Lobo. Infelizmente, a vida e a obra deste verdadeiro Nelson Cavaquinho do Itaim Paulista permanece esquecida. Pouca gente sabe, mas ele gravou um raríssimo e belo LP com seus maiores sucessos. Além das divertidas Estou a Zero e Deu a Louca na Nega, Kazinho relembra sua terra natal em Saudade do Pará e reclama dos amores mal resolvidos em obras-primas como Meu Tipo, Meu Viver e especialmente Eu e a Saudade Pela Rua. Na edição original, não consta a data de lançamento do disco.


Osvaldinho da Cuíca - Osvaldinho da Cuíca Convida Em Referência ao Samba Paulistano - Rio 8 Fonográfico (2006)
Belíssimo trabalho do “embaixador do samba paulista” Osvaldinho da Cuíca. Este CD contém somente canções de sua autoria. Para este trabalho, ele contou com a participação especial de artistas como Demônios da Garoa, Jair Rodrigues, Aldo Bueno, Elizeth Rosa, Dedé Paraízo, Quinteto em Preto e Branco e Thobias da Vai Vai. Destacam-se do excelente repertório músicas como Minha VizinhaDitado Antigo,Barra Funda e Hino da Velha Guarda.





Velha Guarda do G.R.C.E.S. Unidos do Peruche - Memória do Samba Paulista - Sambatá (2008)
Com caprichada produção de T. Kaçula e Renato Dias, Memória do Samba Paulista é o primeiro registro em CD da Velha Guarda da Unidos da Peruche. Contando com canções de bambas como Geraldo Filme e Carlão do Peruche, o repertório demonstra que dentro das escolas paulistanas existem grandes e esquecidos compositores. No Rio de Janeiro, velhas-guardas de inúmeras escolas de samba mereceram diversos álbuns. Em São Paulo, a maioria das escolas paulistanas não ganharam nenhum registro sonoro.

Bibliografia utilizada:

Contracapas de discos e filmes:

- Contracapa do disco Samba Sem Mentira de Jorge Costa, Copacabana Discos, 1968.

- Contracapa do disco Quando Eu Me Chamar Saudade de José Domingos, Chantecler, 1979.

- Documentário Geraldo Filme de Carlos Cortez (1998)

- DVD Ginga no Asfalto de Germano Mathias- Lua Discos (2008)

Livros:

- ANTÔNIO, João. Abraçado ao Meu Rancor. São Paulo: Cosac & Naïfy, 2006.

- BORELLI, Hélvio. Noites Paulistanas: Histórias e Revelações Musicais das Décadas de 50 e 60. São Paulo: Arte & Ciência, 2005.

- JOANIDES, Hiroito. Boca do Lixo. São Paulo: Edições Populares, 1978.

- MACIEL, Paulo Viana. Noite Ilustrada: de Pirapetinga Para o Brasil. São Paulo: Milesi, 1980.

- RAMOS, Caio Silveira. Sambaexplícito: As Vidas Desvairadas de Germano Mathias. São Paulo: A Girafa, 2008.