terça-feira, 2 de junho de 2009

A Magia do Violão


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Por CECÍLIA PRADA



Do popular ao erudito, ele fez história na música brasileira


Quando o major Policarpo Quaresma, homem respeitável e respeitador, saiu pela primeira vez de casa empunhando um violão para tomar aulas, foi um escândalo só, cochichado de porta em porta no pacífico bairro carioca em que morava, naqueles tempos do governo de Floriano Peixoto. Era também o sintoma do triste fim que o personagem teria, no romance de Lima Barreto. Nacionalista ferrenho, o major tinha suas razões para adotar o instrumento – considerava o violão a mais autêntica expressão da alma brasileira.

O que de nenhum modo seria possível prever, naquela época, é que o violão, de obscuras origens, realmente tomaria ruas e salões e passaria da atmosfera dos botecos e vielas às salas de concerto. E que tanto na MPB como na música erudita brasileira, meio século mais tarde, já começaria a se impor internacionalmente, pelo brilhantismo de seus intérpretes e compositores.


Um pouco de história


O modelo do violão moderno só foi criado nos últimos anos do século 19 pelo luthier espanhol Antonio Torres e vem sendo aperfeiçoado ou modificado pelas exigências dos grandes instrumentistas. Para Andrés Segovia, por exemplo, foram construídos modelos com uma caixa acústica maior – origem do instrumento que hoje é usado nos solos com orquestra sinfônica.

No entanto, pesquisas arqueológicas e estudos como o de Isaías Sávio, publicado em 1964, mostram que já na Antiguidade havia instrumentos rudimentares, parecidos com o violão, e que foram encontrados entre os hititas – povo que viveu na Síria setentrional por volta de 1900 a.C. E também na Babilônia e no antigo Egito.

Na Idade Média a guitarra, antecessora direta do violão moderno, já era muito difundida na Europa, e em fins do século 14 era usada até nas catedrais inglesas, francesas e espanholas. No século 17 ganhou bastante espaço na França, onde chegou a ser o instrumento predileto do rei Luís XIV. Compositores como Jean-Baptiste Lully (1632-1687) já escreviam para o instrumento. No período barroco, foi a Itália o centro da música guitarrista. Nos séculos 18 e 19 seu uso expandiu-se na capital da música da época, Viena, e Franz Schubert, que se dizia pobre demais para comprar um piano, fez muito uso da guitarra e compôs para ela. O grande virtuoso do violino, Niccolò Paganini (1782-1840), era também exímio guitarrista.

Mas foi na Espanha que se desenvolveu a grande escola de composição e técnica de Francisco Tárrega (1854-1909), cuja influência ainda se faz sentir até hoje, quer na escola espanhola quer na de três países da América do Sul: Brasil, Uruguai e Argentina – seus discípulos Andrés Segovia (1894-1987) e Miguel Llobet (1875-1938) aqui estiveram várias vezes, até por períodos prolongados, e influenciaram de maneira relevante a história do violão nesses países.

Segovia, ainda presente na memória de todos, pois viveu quase cem anos, excursionou por todo o mundo e teve toda a sua obra gravada. Em todos os lugares estimulou músicos a compor para o instrumento – entre eles Heitor Villa-Lobos e, numa outra geração, Turíbio Santos, no Brasil.


Do boteco à sala de concertos


É controversa ainda a história de como, exatamente, o violão teria chegado ao Brasil (ver texto). A maioria dos historiadores da música dá a sua chegada com os portugueses. Mas parece que de Portugal só nos veio realmente a viola, bem mais primitiva e diferente do violão atual – e que ainda permanece na música caipira do interior do país.

O certo é que durante todo o século 19 o violão foi considerado no Brasil um instrumento "vulgar", essencialmente popular, apropriado somente para acompanhamento. Mas já nas primeiras décadas do século 20, alguns precursores tentavam introduzi-lo como instrumento solista. Os pesquisadores Paulo Castagna e Gilson Antunes, em artigo publicado em "Cultura Vozes" (nº 88, janeiro-fevereiro de 1994), citam a crítica do "Jornal do Commercio" do Rio de Janeiro, de 1916: "Debalde os cultivadores desse instrumento procuram fazê-lo ascender aos círculos sociais onde a arte paira" . Em outra ocasião: "A guitarra nasceu para o fado e o violão para a modinha. Uma e outro jamais lograrão alcançar a perfeição sonhada pelos seus cultores apaixonados ... As regiões da música clássica não lhes são propícias".

No entanto – ainda segundo Castagna e Antunes –, alguns meses mais tarde, no mesmo ano de 1916, a opinião do crítico do jornal mostrava uma mudança radical. O violão passa, subitamente, de primo pobre e malvisto a primo rico. E firma-se como um emergente, como se diria hoje.

O que se passava, na época, nos bastidores da vida cultural do país, em relação à música de violão? A resposta é fácil – a sociedade despertava para as possibilidades do instrumento, divulgadas especialmente pela grande turnê do paraguaio Agustín Barrios, que culminou nas apresentações triunfais no Teatro Municipal de São Paulo em 1917, e também pelo talento e pela originalidade da artista espanhola Josefina Robledo. No próprio país começavam a impor-se personalidades musicais como Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) – autor de Luar do Sertão, peça obrigatória até hoje nas exibições corais –, que se orgulhava de ser "o introdutor do violão na alta sociedade".

Incorporando a tradição da música popular e conduzindo-a ao status de arte culta, vários instrumentistas e compositores brasileiros da primeira metade do século 20 nos deixaram um legado precioso – como João Pernambuco (João Teixeira Guimarães), Rogério Guimarães, provindo de abastada família campineira, e principalmente Canhoto (Américo Jacomino, 1889-1928) e Dilermando Reis (1919-1977).

Não se sabe exatamente onde Canhoto teria nascido. Alguns autores dizem que ele nasceu na Itália, outros, em São Paulo. Ele tinha uma maneira toda própria de tocar e já nos anos de 1912 e 1913 gravava 12 discos pela Odeon. Apresentava-se continuamente como solista ou com um conjunto próprio que incluía clarinete, trombone e cavaquinho. Foi chamado de "O Rei do Violão" e gozou de imensa popularidade, pois apresentava-se até nos cinemas, acompanhando o filme – como era moda naquela época do cinema mudo.

Quanto a Dilermando Reis, ganhou fama atuando no rádio, de 1935 até o final da década de 60. Influenciou todo o povo e nos deixou mais de 300 composições gravadas, até hoje obrigatórias no repertório do gênero. O violonista Turíbio Santos, que é filho de seresteiro, costuma contar com orgulho que iniciou sua carreira tocando valsas de Dilermando Reis. O mais interessante é que Dilermando, artista tão consagrado, não conhecia música. Tocava e compunha "de ouvido".

O violonista e historiador Genésio Nogueira, no livro Sua Majestade o Violão (citado por Francisco Araújo), estabelece um ousado paralelo entre as figuras de Dilermando Reis e Andrés Segovia: "... para o mundo, encontraremos um substituto para Segovia, mas para o Brasil Dilermando Reis é insubstituível".


"Merece uma estátua"


É o que se diz, unanimemente, do músico e professor Isaías Sávio, o introdutor do ensino do violão clássico nos conservatórios brasileiros. Nascido no Uruguai em 1900, foi aluno de Miguel Llobet, o grande discípulo e continuador da obra de Francisco Tárrega. Em entrevista à revista "Visão" (8 de novembro de 1976), dizia Sávio: "Quando aqui cheguei, em 1931, ninguém tocava violão por música, não havia programas, não se publicavam músicas. Canhoto era o grande violonista da época, mas nunca se falara em violão clássico".

Sávio criou a primeira cadeira de violão no Conservatório de São Paulo, organizou currículos, formou os melhores profissionais do país e permaneceu como professor e pesquisador até sua morte, em 1977. Dele disse o grande violonista Antônio Carlos Barbosa Lima, de renome internacional: "Todo violonista no Brasil, direta ou indiretamente, tem influência do Sávio, porque ele foi o pioneiro, o desbravador do violão no Brasil".

É claro que, nesse quadro que analisamos, a figura de Villa-Lobos (1887-1959) ressalta pela excepcionalidade – já em 1912 ele escrevia a primeira partitura para violão clássico no Brasil, a Suíte Popular Brasileira, seguida na década de 20 pelos Doze Estudos Dedicados a Segovia, pelos Cinco Prelúdios para Violão e pelos Choros – entre outras peças. Mas sua obra foi sempre mais divulgada no exterior, na Europa e nos Estados Unidos, mais preparados, na época, para a sua genialidade. A partir da Semana de Arte Moderna de 1922, o compositor se voltou para a pesquisa do folclore brasileiro, conviveu com o povo e conseguiu integrar de forma única as duas vertentes culturais – européia e sul-americana – a que pertencia.

Com o desenvolvimento de toda uma geração de violonistas brasileiros – na maior parte formada também no exterior –, a música de outros compositores que escreveram para o violão, como Edino Krieger, Marlos Nobre, Francisco Mignone, José Antônio Resende de Almeida Prado, pôde rapidamente atingir, durante as décadas de 60 e 70, fama internacional.



MPB pede passagem

Amantes da música se reúnem por prazer


A recriação de uma Rua do Choro bem no coração da "cracolândia" – o bairro da Luz, no centro de São Paulo – desde o final do ano passado recebe o apoio oficial do governo do estado e faz parte do plano geral de recuperação da região central da cidade. Um plano que foi iniciado com a criação da Sala São Paulo, atual sede da Orquestra Sinfônica Estadual, na antiga Estação Júlio Prestes, e com a reforma da Pinacoteca do Estado. E que vai prosseguir com a fundação de um centro cultural e escola de música no edifício projetado por Ramos de Azevedo que por muitos e inglórios anos abrigou o antigo Dops, e com a restauração, já em curso, da Estação da Luz.

Após marcar presença na Rua João Moura, em Pinheiros, de 1983 a 1989, com espetáculos de arromba que reuniram sempre os mais famosos músicos e cantores do gênero, os "chorões" paulistanos haviam se dispersado pela cidade, seguindo bem a característica do estilo. Como dizia Jacó do Bandolim, afinal o choro devia ser executado na informalidade, na roda de amigos, no quintal da casa. Em um fim de semana, à tarde, com os músicos chegando, de pijama até, reconhecendo os companheiros, introduzindo os novatos, se esquecendo madrugada adentro no improviso e na amizade.

Mas, durante esse tempo todo, um lugar na cidade abrigou chorões, sambistas, pagodeiros, cantores – e o seu público. Um local tradicional, um nome que é passado de boca em boca e valorizado por amadores e profissionais – a loja de instrumentos musicais A Contemporânea, na Rua General Osório, número 46. A rua que passa a ser também, de ora em diante, a Nova Rua do Choro.

Fundada há 48 anos por Miguel Fasanelli, que é também fabricante e exportador de instrumentos, a loja há várias décadas se tornou ponto de encontro obrigatório de instrumentistas e cantores. Diz Fasanelli: "Logo depois da inauguração, em 1954, os músicos foram chegando e dando canja. Aqui ninguém paga para assistir, ninguém ganha para tocar. Todos os músicos famosos passaram por aqui, os maiores nomes. O pessoal do Rio de Janeiro sempre vem aqui. Cartola foi um dos primeiros, sempre vinha sem violão, pegava um emprestado e ficava tocando. Assim como outros nomes: Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Jacó do Bandolim..."

Os retratos que cobrem as paredes atestam com seus autógrafos, estabelecem um diálogo de classe entre músicos, amantes do samba, do pagode, de tantos gêneros. Nos fundos da loja, um espaço fechado de uns 20 metros quadrados, com uma parede de vidro que lhe dá jeito de aquário, abriga todos os sábados a confraria musical. Bandolins, cavaquinhos, violões, flautas, pandeiros... o que houver. Os músicos começam a chegar logo cedo. "Há gente que espera desde as sete e meia que a loja abra, o que acontece às nove", diz Fasanelli. Cumprimentam-se com grandes abraços, extravasam a saudade dos que há muito não se revêem, uma fraternidade. Se aboletam, se revezam, a música não pára, para júbilo da platéia, que se acomoda como pode nos bancos de madeira ou de pé. Os que não cabem no espaço exíguo ficam de fora, olhando pelo vidro. "Não quero ampliar esse espaço para não perder o clima íntimo", explica o dono da loja.

Temos a impressão de estar numa pequena nave que nos leva a tempos remotos e românticos. Com a chegada, obrigatória, de Arnaldinho do Cavaco, pulsam sambas, choros, serestas. No decorrer da manhã aumenta a platéia, vão chegando conjuntos, logo será a hora do pagode, na rua, em torno de uma mesa. O conjunto Clube do Pagode, sacudindo tamborins, cantando músicas "do tempo da escravidão" – coisas antigas, persistentes, preservadas, de compositores famosos. Como explica o músico Caçula, abrindo um sorriso largo na face: "A gente vai defendendo a música brasileira. A televisão não deixa, mas a gente faz o que pode".

Para os que têm fome e são chegados a uma boa feijoada, é só atravessar a rua para se fartar no Restaurante Première. Na rua animada, o samba de raiz pede passagem, lá por volta das 14 ou 15 horas. Visitantes de longe se animam e exibem passos de dança – como Vera Soares, de 55 anos, veterana da Mangueira, que vem do Rio para sambar em São Paulo. Fasanelli e os sobrinhos Sérgio e Roberto Guarilha, que trabalham com ele, passam entre os vários grupos, apresentações são feitas – "Você conhece o Adãozinho, que jogava no Corinthians?"

Antes, no final do expediente da loja, o samba era transferido para o bar e não tinha hora para acabar. Agora, a partir das 16 horas começa a fremir a música pelos alto-falantes do grande palanque armado pela Secretaria Estadual de Cultura. Na Rua do Choro, recuperada, a multidão vai se reunindo, animada, e a MPB triunfa, como uma demonstração de criatividade, alegria e espontaneidade do povo brasileiro.