sábado, 9 de maio de 2009

Batuqueiros da Paulicéia

Publicado no ESTADÃO.COM.BR


Por Francisco Quinteiro Pires





O samba de São Paulo sofre de carência. Ele sente a falta de uma bibliografia. Por ser vítima, sabe bem que, quando o passado depende apenas da transmissão oral, a história corre um risco maior de manipulação. Em Batuqueiros da Paulicéia, André Domingues e Osvaldinho da Cuíca contrariam esse fato ao aliar um "relato afetivo", baseado em memórias, ao material consolidado por estudos fundamentais como O Samba Rural Paulista, do modernista Mário de Andrade.


link Ouça Grupo da Barra Funda

"Quando conversei com o Osvaldinho para o livro, pensei que ele falaria de grandes artistas e seguiria a trajetória consagrada da MPB", diz o pesquisador André Domingues, de 32 anos. "O que ele me contou são detalhes essenciais resgatados por uma memória cercada pelo afeto." Mesmo narrada em primeira pessoa, a obra não se perde na subjetividade ao falar do samba paulista, "um buraco negro" para os pesquisadores.

As entrevistas com o sambista começaram em 2003. Osvaldinho passava por sessões de quimioterapia para tratar um câncer na garganta. Domingues diz que os excluídos da história oficial gostam de romantizar suas trajetórias - têm a necessidade de elevar seus feitos. Segundo ele, em nenhum momento Osvaldinho da Cuíca, de 69 anos, afirmou ser um dos grandes batuqueiros de São Paulo. "Mesmo se tivesse tentado, eu não deixaria que ele puxasse a sardinha", brinca.

Batuqueiros da Paulicéia (Barcarolla, 216 págs., R$ 34) será lançado em quatro shows no Sesc Pompeia, entre hoje e domingo. Foram chamados músicos que representam diferentes momentos do gênero: Carlão do Peruche, Germano Mathias, Thobias da Vai-Vai, Bebeto, Wandi Doratiotto, Celso Viáfora, Bebeto, Fabiana Cozza, Quinteto em Branco e Preto.

A obra se divide em duas seções - Samba de Rua e Samba Profissional. Ela questiona a ideia, hoje consensual, de que o samba-de-bumbo da cidade de Pirapora do Bom Jesus é a semente do samba paulista. Apesar de ser um balaio que reuniu os diversos ritmos trazidos por romeiros, ele é apenas um dos elementos a formar o gênero. 

Para entender o "samba autenticamente paulista", é preciso lançar um olhar múltiplo no tempo e no espaço. O gênero mescla influências do samba rural do século 19, da batucada de trabalhadores braçais no Largo da Banana (hoje região do Memorial da América Latina) e dos engraxates do centro, nas primeiras décadas do século 20.

Os autores lembram a importância do rádio, a partir dos anos 1920, na transmissão do samba carioca. A obra aborda o carnaval paulista, marcado pela solidariedade e intrigas. Começando pela marcha sambada dos cordões, ele ressalta a oficialização do carnaval em 1968 como o ponto em que o gênero perde suas particularidades, assemelhando-se ao carioca. O bumbo era substituído pelo repinique e o tamborim, instrumentos que aceleraram o andamento. Em 1972, com o fim dos cordões, acabou o samba autenticamente paulista, segundo Osvaldinho. "Hoje ele não existe mais", diz. "O samba tem uma forma única, que é a carioca."

Sem lamentar as perdas do passado, Batuqueiros da Paulicéia fala das transformações do gênero. Aborda o fenômeno do samba-rock nas boates da capital, a vanguarda paulistana e o pagode romântico dos anos 1990, que, para Osvaldinho, provocou o surgimento de grupos preocupados com o "samba de raiz". A rejeição ao novo contraria a essência de São Paulo que é a mesma do samba: o poder de incorporar a diversidade. 

Serviço

Osvaldinho da Cuíca. Sesc Pompeia. Choperia (800 lug.). R. Clélia, 93, 3871- 7700. 5.ª a sáb., 21 h; dom., 18h30. R$ 16


Depoimentos

"Tenho admiração profunda por Osvaldinho, um antropólogo do samba paulista. Ele é importante por atuar em três frentes: como compositor, percussionista e pesquisador. É autor de grandes sambas, tocou com muita gente e faz o resgate das memórias do samba, sobretudo o rural. Ele viveu as várias fases de transformação do gênero."

CELSO VIÁFORA
CANTOR E COMPOSITOR


"Ligado historicamente à escola de samba Vai-Vai, Osvaldinho é um grande ritmista, educador, pesquisador. Batuqueiros da Paulicéia é muito importante, porque somos carentes de uma bibliografia sobre o samba paulista, desde as suas origens. Ele é uma autoridade no assunto. Conheceu as personalidades que ergueram o gênero."

FABIANA COZZA
CANTORA

"Conheço o Osvaldinho há muito tempo, ele participou de vários programas Bem Brasil. É uma figura admirável. Ele é a história do samba paulista por ter convivido com gente como Geraldo Filme, Talismã, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Conhece muito o samba rural, e não tem preconceito com as novas vertentes."

WANDI DORATIOTTO
MÚSICO E APRESENTADOR

segunda-feira, 4 de maio de 2009

E no princípio, era a roda







Por Bruno Ribeiro



O samba já foi tema de centenas de livros que tentam explicar a sua história e o seu ritmo. Poucos, porém, foram além disso e aprofundaram aspectos pouco abordados deste riquíssimo gênero musical. No Princípio, era a Roda – Um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes (Ed. Rocco, 320 pág., R$ 35) veio completar esta lacuna e colocar o nome do jornalista e historiador carioca Roberto M. Moura entre os maiores estudiosos do samba na atualidade.

Fruto de uma tese de doutorado em Música para a UniRio, o livro parte do princípio de que a roda é anterior ao samba desde que o gênero nasceu na casa de Tia Ciata, na Praça Onze, no começo do século passado. O ponto de partida que o pesquisador usa para defender a tese é a oposição complementar entre "casa" e "rua", sugerida pelo antropólogo Roberto Da Matta – para quem a roda de samba simbolizaria a "casa" do sambista – onde se reproduziriam as relações mais íntimas e profundas – enquanto que a escola de samba representaria a "rua" – uma vez dominada pela política de apadrinhamento, pela troca de favores e pelo jogo do bicho. "Quando comecei a repetir que não é o samba que faz a roda, mas a roda que faz o samba, ouvi reações acadêmicas do tipo ‘quem disse isso?’, como se fosse uma heresia. Tive então a certeza de estar trabalhando em cima de uma idéia original", diz Moura, sem perder tempo na resposta aos críticos da academia: "Eu estou dizendo isso, depois de cem anos de bibliografia musical no Brasil". A maior contribuição que a obra do jornalista presta ao conhecimento que se tem sobre o samba é a de deixar bastante claras as diferenças entre roda de samba, samba e escola de samba – três entidades que existem autônomas, embora ainda andem juntas, na cabeça da maioria das pessoas. No livro, a divisão da história do samba em três etapas: a roda (fenômeno que criou as condições para o aparecimento do samba), o samba propriamente dito (como gênero musical) e a escola de samba (sua institucionalização). Moura conta como o sambista saiu das rodas para recriar nas escolas de samba a extensão de seu quintal. E de como retorna para a "casa", no momento em que as escolas tornam-se instituições voltadas para o dinheiro. Em meados dos anos 60, quando é implantada a "ditadura do samba-enredo" nas escolas, lugares como o bar Zicartola, espetáculos como o Rosa de Ouro e noitadas de samba no Teatro Opinião passam a aglutinar mais sambistas que todas as escolas de samba juntas. "Não é à toa que João Nogueira se afasta da Portela ao ser impedido de cantar um samba de meio de ano na quadra. Na ditadura das escolas, a partir de meados dos anos 60, só entra samba-enredo", comenta o pesquisador. Para entender o funcionamento de uma roda de samba, Roberto M. Moura propõe um retorno no tempo e traça uma linha cronológica que começa no quintal da Tia Ciata, passa por Cacique de Ramos e desemboca nas rodas da Lapa, feitas pela atual juventude carioca. O autor define a roda como "resultado da dialética entre o cotidiano e a utopia", capaz de instaurar no sambista "a ilusão da eternidade". Como constata a tese, a permanência da roda ao longo do século é explicada pela gama de sentimentos capaz de gerar entre seus participantes. "É como se, durante a roda de samba, "o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora". Quando a baiana Ciata abriu seu quintal, no Rio de Janeiro, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, não imaginava que este modelo de confraternização universal se tornasse a alma e a razão de sobrevivência de um gênero musical tradicionalmente perseguido – inicialmente pela polícia e depois pelo preconceito da sociedade. Apesar do aspecto aparentemente anárquico e espontâneo da roda de samba, o livro revela a existência de regras fundamentais para o seu bom funcionamento. Na roda a hierarquia é respeitada não pelo sucesso ou pelo dinheiro que a pessoa tem, mas por sua história dentro do samba. Segundo a obra, há formas e formas de ser aceito no universo da roda. A mais natural delas é cantando e tocando – mas não são formas exclusivas. Há quem fique apenas no coro e nas palmas e mesmo assim seja considerado "do ramo". Entre os simpatizantes, há quem cuide da cozinha e dos tira-gostos. Sobre as regras de aceitação, registra o autor: "Como em qualquer prática social semelhante, a roda também tem uma espécie de regulamento interno: não se pode ousar manejar um instrumento sem competência, falar mais alto do que o som que vem da roda (um papo discreto, no canto, mesmo uma paquera, nenhum problema), interromper quem está puxando o samba e, pecado venial quando o sujeito está se aproximando mas suportável quando ele já pertence ao grupo, puxar um samba e esquecer a letra pela metade". Apesar de ser fruto de uma tese de doutorado e envolver aspectos etnológicos, sociológicos e antropológicos, No princípio, era a roda, é um bate-papo informal, objetivo e rico. Assim como o samba.

_____________________________ Bruno Ribeiro é jornalista e escritor. Torcedor do glorioso São Cristóvão Futebol Clube, não deu certo como ponta-esquerda, não deu certo como poeta maldito, não deu certo como compositor de samba. Foi ser jornalista e escrever sobre os bares de Campinas. Segue o lema de Maiakóvsky: também acha preferível morrer de vodca a morrer de tédio. Há algum tempo é editor da seção de Artes da Revista Consciência.Net. Contato: bruno@cumbuca.com.br