Por Bruno Ribeiro
O samba já foi tema de centenas de livros que tentam explicar a sua história e o seu ritmo. Poucos, porém, foram além disso e aprofundaram aspectos pouco abordados deste riquíssimo gênero musical. No Princípio, era a Roda – Um estudo sobre o samba, partido-alto e outros pagodes (Ed. Rocco, 320 pág., R$ 35) veio completar esta lacuna e colocar o nome do jornalista e historiador carioca Roberto M. Moura entre os maiores estudiosos do samba na atualidade.
Fruto de uma tese de doutorado em Música para a UniRio, o livro parte do princípio de que a roda é anterior ao samba desde que o gênero nasceu na casa de Tia Ciata, na Praça Onze, no começo do século passado. O ponto de partida que o pesquisador usa para defender a tese é a oposição complementar entre "casa" e "rua", sugerida pelo antropólogo Roberto Da Matta – para quem a roda de samba simbolizaria a "casa" do sambista – onde se reproduziriam as relações mais íntimas e profundas – enquanto que a escola de samba representaria a "rua" – uma vez dominada pela política de apadrinhamento, pela troca de favores e pelo jogo do bicho. "Quando comecei a repetir que não é o samba que faz a roda, mas a roda que faz o samba, ouvi reações acadêmicas do tipo ‘quem disse isso?’, como se fosse uma heresia. Tive então a certeza de estar trabalhando em cima de uma idéia original", diz Moura, sem perder tempo na resposta aos críticos da academia: "Eu estou dizendo isso, depois de cem anos de bibliografia musical no Brasil". A maior contribuição que a obra do jornalista presta ao conhecimento que se tem sobre o samba é a de deixar bastante claras as diferenças entre roda de samba, samba e escola de samba – três entidades que existem autônomas, embora ainda andem juntas, na cabeça da maioria das pessoas. No livro, a divisão da história do samba em três etapas: a roda (fenômeno que criou as condições para o aparecimento do samba), o samba propriamente dito (como gênero musical) e a escola de samba (sua institucionalização). Moura conta como o sambista saiu das rodas para recriar nas escolas de samba a extensão de seu quintal. E de como retorna para a "casa", no momento em que as escolas tornam-se instituições voltadas para o dinheiro. Em meados dos anos 60, quando é implantada a "ditadura do samba-enredo" nas escolas, lugares como o bar Zicartola, espetáculos como o Rosa de Ouro e noitadas de samba no Teatro Opinião passam a aglutinar mais sambistas que todas as escolas de samba juntas. "Não é à toa que João Nogueira se afasta da Portela ao ser impedido de cantar um samba de meio de ano na quadra. Na ditadura das escolas, a partir de meados dos anos 60, só entra samba-enredo", comenta o pesquisador. Para entender o funcionamento de uma roda de samba, Roberto M. Moura propõe um retorno no tempo e traça uma linha cronológica que começa no quintal da Tia Ciata, passa por Cacique de Ramos e desemboca nas rodas da Lapa, feitas pela atual juventude carioca. O autor define a roda como "resultado da dialética entre o cotidiano e a utopia", capaz de instaurar no sambista "a ilusão da eternidade". Como constata a tese, a permanência da roda ao longo do século é explicada pela gama de sentimentos capaz de gerar entre seus participantes. "É como se, durante a roda de samba, "o tempo tivesse parado e o mundo ficasse lá fora". Quando a baiana Ciata abriu seu quintal, no Rio de Janeiro, para que músicos e batuqueiros pudessem tocar e cantar ao redor de uma enorme mesa repleta de garrafas e quitutes, não imaginava que este modelo de confraternização universal se tornasse a alma e a razão de sobrevivência de um gênero musical tradicionalmente perseguido – inicialmente pela polícia e depois pelo preconceito da sociedade. Apesar do aspecto aparentemente anárquico e espontâneo da roda de samba, o livro revela a existência de regras fundamentais para o seu bom funcionamento. Na roda a hierarquia é respeitada não pelo sucesso ou pelo dinheiro que a pessoa tem, mas por sua história dentro do samba. Segundo a obra, há formas e formas de ser aceito no universo da roda. A mais natural delas é cantando e tocando – mas não são formas exclusivas. Há quem fique apenas no coro e nas palmas e mesmo assim seja considerado "do ramo". Entre os simpatizantes, há quem cuide da cozinha e dos tira-gostos. Sobre as regras de aceitação, registra o autor: "Como em qualquer prática social semelhante, a roda também tem uma espécie de regulamento interno: não se pode ousar manejar um instrumento sem competência, falar mais alto do que o som que vem da roda (um papo discreto, no canto, mesmo uma paquera, nenhum problema), interromper quem está puxando o samba e, pecado venial quando o sujeito está se aproximando mas suportável quando ele já pertence ao grupo, puxar um samba e esquecer a letra pela metade". Apesar de ser fruto de uma tese de doutorado e envolver aspectos etnológicos, sociológicos e antropológicos, No princípio, era a roda, é um bate-papo informal, objetivo e rico. Assim como o samba.
_____________________________ Bruno Ribeiro é jornalista e escritor. Torcedor do glorioso São Cristóvão Futebol Clube, não deu certo como ponta-esquerda, não deu certo como poeta maldito, não deu certo como compositor de samba. Foi ser jornalista e escrever sobre os bares de Campinas. Segue o lema de Maiakóvsky: também acha preferível morrer de vodca a morrer de tédio. Há algum tempo é editor da seção de Artes da Revista Consciência.Net. Contato: bruno@cumbuca.com.br