Pirapora é ponto de destino de peregrinação religiosa. Grosso modo, poderia ser comparada a uma mini-Aparecida do Norte. As pequenas lojas ostentam fitinhas, retratos e estátuas de uma variedade incontável de santos católicos. Ao longo do ano, o município atrai pessoas de todas as partes do Brasil, especialmente romeiros, que vêm pagar promessas e fazer novos pedidos a Bom Jesus.
Em meio a todo esse misticismo e religiosidade, um outro elemento cultural faz parte do imaginário popular dessa pequena cidade da região oeste da Grande São Paulo, distante 54 quilômetros da capital, e que tem pouco mais de 12 mil habitantes. Na história de Pirapora do Bom Jesus, há registros de uma manifestação para lá de pagã. O jeito pacato piraporense nem de longe denuncia que aquele foi um pólo aglutinador de grupos do samba paulista entre o final do século 19 e meados do século seguinte.
O samba e a devoção religiosa parecem contraditórios, mas naquela localidade acabaram se tornando faces de uma mesma moeda. Por alguns anos a expressão musical ficou um tanto esquecida, mas desde a última década nota-se, por parte da própria população e até do poder público, um esforço para retomar a memória e a tradição sambista da cidade.
Religião e cultura
A visita à cidade é uma prática religiosa que existe desde a descoberta da imagem de Bom Jesus às margens do rio Tietê, em 1725. São conhecidas diversas versões desse acontecimento, recontadas pelos moradores de Pirapora há várias gerações.
No século 18, havia ainda muitas missões jesuíticas espalhadas pelo interior paulista. Esses redutos religiosos, no entanto, sofriam constantes ataques das bandeiras. Para não abandonar as imagens sagradas quando eram obrigados a fugir, os jesuítas as enterravam ou lançavam no rio. Supõe-se que foi este último o destino dado à estátua de Bom Jesus, que, depois de ser levada pela correnteza, teria parado entre as pedras.
Segundo os piraporenses, a imagem de um metro e oitenta, toda entalhada em madeira, foi assim encontrada. Alguns afirmam que escravos de uma fazenda das redondezas foram os autores da descoberta, outros a atribuem a tropeiros ou mineradores. O fato é que ela foi resgatada e levada para um paiol de milho, que depois se incendiou. Quando, após destruir todo o lugar, as chamas afinal se apagaram, as pessoas acreditaram presenciar o primeiro milagre de Bom Jesus: a imagem, ao contrário de tudo mais, não havia sido tocada pelo fogo.
Foi então decidido que a imagem de Bom Jesus seria levada para o centro de Santana do Parnaíba, o único local em que havia uma capela. Pirapora, naquela época, era apenas um vilarejo pertencente a essa cidade e só se tornou independente em 1959. No meio do caminho, o carro de boi que a carregava atolou, e não houve meio de fazê-lo mover-se. Nesse momento, um homem que acompanhava a procissão disse: "Bom Jesus não quer sair de Pirapora. Voltem!" – o que foi imediatamente entendido como o segundo milagre, já que o autor da frase era, na verdade, mudo. A imagem acabou, assim, retornando para onde estava. "Desde então, há 280 anos ela está aqui na cidade", conta o padre Alvarino Bienzobás Júnior, responsável pela igreja de Pirapora até 2006.
Ao longo dos anos, a imagem de Bom Jesus começou a ganhar fama de milagreira. Grupos de todas as classes sociais, da elite à população rural do entorno de Pirapora, para lá se dirigiam. "Houve então um afluxo muito grande de negros, praticantes do samba em seus lugares de origem", explica o padre Alvarino. Em São Paulo, a presença deles era expressiva por causa do ciclo da cana e, posteriormente, do café.
O acesso à cidade não era fácil. A Estrada dos Romeiros nada mais era que uma trilha pela qual só passavam carros de boi e cavalos. Por esse motivo, os negros que chegavam a Pirapora permaneciam no local por vários dias, em hotéis, acampamentos ou nos chamados barracões – duas edificações pertencentes à Igreja destinadas a alojar aqueles que não tinham dinheiro para pagar hospedagem.
Os romeiros daquela época tinham, então, muito tempo livre depois de cumprir o ritual religioso. Entre uma oração e outra, divertiam-se em festas, que aconteciam nos barracões ou mesmo na rua. Essas comemorações eram repletas de dança, música, bebida e encontros com os amigos.
A música era marcada pelo uso de instrumentos de percussão, como as zabumbas, tambores, reco-recos e chocalhos. O bumbo foi o que caracterizou o samba paulista e, como explica o antropólogo Marcelo Manzatti, "é possível identificar a família dos tipos de samba rural a partir do seu uso". Essa centralidade do tambor grave é de origem africana, apesar de o instrumento ser europeu. "O bumbo é um tambor que dá o ritmo de acordo com a dança e a situação, enquanto os tambores menores seguram a marcação", explica o estudioso.
Essa tradição musical se caracteriza também por uma hierarquia entre seus membros. O chefe ou dono do samba é a pessoa mais respeitada do grupo e é quem detém os instrumentos. Outra figura de importância é o tocador de bumbo, que dá o tom das cantigas e das coreografias.
Nascedouro ou aglutinador?
"Pirapora tornou-se ponto de convergência dos tocadores de samba. A música era praticada numa dezena de cidades do interior e até na própria capital, no contexto de festas religiosas ou ainda em terreiros. Pirapora do Bom Jesus não é o lugar originário do samba, como o pessoal gosta de falar", esclarece Manzatti.
A documentação mais antiga sobre o samba de bumbo é um relato de 1856 sobre uma festa junina de uma fazenda de café em Piracicaba. "Como era uma manifestação de excluídos, não há muitos registros formais. No entanto, existem depoimentos de que o samba em Pirapora acontecia já na passagem do século 19 para o 20, a partir dos grupos que visitavam a cidade durante a festa de Bom Jesus", diz o antropólogo. As pessoas vinham de diferentes lugares de São Paulo, como Capivari, Itu, Tietê, Jundiaí e Campinas, e também de Minas Gerais.
A confluência desses grupos contribuiu para que a cidade desenvolvesse um ritmo único. "O samba de Pirapora é híbrido, porque congrega características de outras ramificações e vários estilos do samba rural, que não é homogêneo", descreve Manzatti. Entre os diversos tipos, dois se destacaram: o caipira de Pirapora, que resgata a tradição do samba de roda, e o campineiro, feito por negros com batuques africanos, herança da época das senzalas.
A rivalidade entre os grupos era instigada e consagrada nas disputas dos repentes, com improvisação de versos. Nas letras surgia a reflexão sobre um acontecimento do cotidiano ou a realidade humilde e dura vivida por esses negros.
Repressão
Naquele período, os negros eram vítimas de preconceito explícito e de marginalização social. Por esse motivo, o samba também não era visto com bons olhos. Não foram raros os casos em que houve repressão ou cerceamento tanto por parte do poder público, que tratava a questão como caso de polícia, como da Igreja, que considerava o ritmo muito lascivo para os padrões católicos. No entanto, a própria Igreja oscilava em sua atitude, ora mostrando-se tolerante, para poder atrair as pessoas, ora reprimindo essa manifestação.
Como não havia leis que vetassem oficialmente o samba, a classificação de danças como "desonestas" e "indecentes" era de ordem subjetiva. "Atos de controle, como proibir o samba dentro do barracão ou que ocorresse em determinados horários e locais, criaram dificuldades para que ele acontecesse naturalmente, se desenvolvesse e crescesse. A repressão permeou todo o cotidiano e teve influência na forma como o samba se organiza hoje", considera Manzatti.
Devido à segregação racial e social, não eram muitos os brancos que participavam do samba. A aproximação aconteceu aos poucos. Em Pirapora, Honorato Missé (1903-1964) ficou famoso por constituir, em 1930, o primeiro grupo de samba de roda da cidade de que se tem notícia. Sitiante branco com condição financeira um pouco melhor do que a dos negros, ele era considerado "dono do samba", porque possuía os instrumentos musicais.
Segundo Policarpo José da Cruz, assessor da Secretaria de Cultura e Turismo da prefeitura da cidade, Missé não tinha um grupo fixo de tocadores: "O pessoal ficava dançando, alguém chegava e batia no bumbo. Era divertimento para todo mundo, uma democracia. Todos entravam [na roda], tocavam e ninguém mandava", diz.
O grupo Samba de Roda de Pirapora, de Missé, se dispersou com a morte de seu fundador, mas, ainda hoje, há dois remanescentes daquela época: Maria Esther Camargo de Lara, de 83 anos, e João Alves do Amaral, de 71, mais conhecido como João do Pasto.
Decadência
Por 20 anos, o samba ficou praticamente esquecido em Pirapora. A morte de Honorato Missé contribuiu em grande parte para isso, assim como a notável diminuição dos visitantes religiosos. Fato é que por essa época o grupo de sambistas campineiro deixou de ir a Pirapora todos os anos, assim como os de outros municípios vizinhos.
Padre Alvarino calcula que a queda do número de pessoas na cidade foi de 85% nos últimos 30 anos, mas a diminuição mais significativa ocorreu entre os anos de 2000 e 2005. "O que mais atrapalha é a falta de poder aquisitivo. Não é todo mundo que tem recursos para ir até Pirapora. Hoje, os acessos à cidade são mais fáceis, mas, em compensação, tudo custa dinheiro." Nos anos 1950, os barracões foram desativados e, depois, demolidos, o que, no dizer de dona Maria Esther, contribuiu para o fim da "romerada".
O agravamento da poluição do rio Tietê, de onde muitos romeiros tiravam os peixes para se alimentar ou vender, e o crescimento da cidade de Aparecida do Norte como centro religioso foram outros fatores que contribuíram para o afastamento dos visitantes. Além disso, um estudo do sociólogo Octavio Ianni mostra que, com a expectativa de ascensão, uma parcela dos negros que alcançava padrões de classe média começou a deixar para trás todo o passado e tradições ligados à vida de escravos e às raízes africanas.
Para Manzatti, a cidade acabou sendo vítima de sua própria fama. "A festa cresceu muito", diz ele. Pirapora não teve infra-estrutura para suportar tanta demanda. Mesmo hoje, com movimento menor, cerca de 80 romarias seguem para lá ao longo de todo o ano.
A Igreja calcula que a cidade recebe de 7 mil a 10 mil visitantes por mês, que se concentram principalmente nos domingos. O movimento aumenta na Semana Santa, quando chegam até 40 mil pessoas entre o Domingo de Ramos e o da Páscoa. Em agosto, o número sobe para 80 mil a 90 mil, por causa do aniversário da cidade e das homenagens ao padroeiro.
Renovação
A revitalização do movimento musical na cidade veio há menos de uma década, com a participação de dona Maria Esther e seu João do Pasto. Outros homens e mulheres, de idades variadas, fazem parte do novo grupo que se formou, cuja função é diversa daquela de décadas atrás. "Hoje o samba é feito para apresentação pública, não existe mais como lazer. Antes era uma brincadeira sem compromisso de representar a cidade, mas agora está bem diferente", considera Manzatti. O antropólogo destaca o empobrecimento dos versos das músicas: "Eles não improvisam mais, apresentam apenas coisas que eram cantadas anos atrás. Nesse sentido, o samba se descaracterizou bastante".
O sambista Osvaldinho da Cuíca, de São Paulo, tem uma visão um pouco diferente. Segundo ele, a tradição foi preservada em Pirapora, ainda que a música esteja bem modificada em sua batida. "O samba de Pirapora é puro em sua essência e na sua inocência", explica.
Para seu João do Pasto, o ideal seria que as crianças se envolvessem com o samba desde cedo, para que as próximas gerações pudessem levar adiante a tradição. Graziela Guariglia Costa, secretária de Cultura e Turismo da prefeitura local, também demonstra preocupação com a permanência dessa manifestação. "A música é fundamental não só para a cidade, mas também para o estado de São Paulo. Pirapora tem a responsabilidade de preservá-la. Não podemos deixar que seja esquecida", afirma ela.
Influências e transformações
Com a decadência da economia cafeeira e, ao mesmo tempo, a ascensão do pólo industrial da capital, houve uma migração da população, que acabou levando na bagagem seu samba para a zona urbana. "As figuras mais importantes e fundadoras do samba da capital de São Paulo são tributárias do samba rural paulista", afirma Manzatti. Ele cita músicos como Toniquinho Batuqueiro, que era de Piracicaba, Henricão da Vai-Vai, de Itapira, Geraldo Filme, de São João da Boa Vista, como algumas das personalidades que levaram a tradição sambista para a capital.
Com o passar do tempo, todas as características do samba foram se alterando. "São Paulo era uma vila e sempre copiou o Rio de Janeiro, que há muito já era uma referência cultural. Mas antes não existiam meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, o que preservava um modelo próprio paulista e outro carioca. Atualmente, é tudo mais homogêneo", observa o antropólogo. A seu ver, o momento radical de mudança do samba paulistano se deu no final dos anos 1960 e início dos 70, quando se organizaram as primeiras ligas carnavalescas em São Paulo.
O samba paulista tinha uma característica própria que foi se perdendo. Antes, era notável a influência do choro e do ritmo das bandas militares, acrescidos do uso da viola e instrumentos de sopro. A bateria era menor e sua rítmica vinha dos cordões e do samba rural.
Segundo o antropólogo, o lento e longo processo de transformação da música tem a ver ainda com a realidade das pessoas que a executam e com as alterações das estruturas sociais e econômicas. "A cultura é um movimento dinâmico por si só, mas as mudanças aconteceram também devido à carência de encontros e instrumentos, além da exclusão social e cultural. O samba rural sofreu modificações nas cidades de origem, depois em Pirapora e, então, na cidade de São Paulo, onde acaba perdendo força."
"Grande parte do que a gente faz tem inspiração no modismo que vingou, que é o do padrão carioca. O componente caipira do samba paulista não existe mais", lamenta Osvaldinho da Cuíca.
Os remanescentes do samba
João Alves do Amaral, de 71 anos, ficou conhecido como João do Pasto porque sempre trabalhou nos pastos e com criação de animais. Casado, com filho e netos, ele é homem do samba há mais de 60 anos.
Quando pequeno, morava nas proximidades de Jundiaí. Antes dos dez anos, teve o primeiro contato com o samba: "Conheci o Honorato Missé na festa de São Roque do Barreiro, que acontecia todo dia 15 de agosto. Lá, vi eles tocarem e gostei do samba. Foi o Honorato quem me ensinou as letras e o caminho", conta.
Em 1949, seu João do Pasto se mudou para Pirapora e lá continuou acompanhando a música de Missé. Assim, acabou conhecendo os negros sambadores que iam à cidade. "Naquele ano, ainda existia o barracão. Entrei no samba dos pretos. Não podia, mas eu era pequeno e curioso. Os instrumentos eram diferentes, tinha mais bumbo. Nas danças havia a umbigada, a dança dos bugres."
Dona Maria Esther concorda que o samba dos negros era privativo: "Branco não participava do samba, que era só deles. Eu era pequenininha e entrava, mas eles me tiravam", recorda. "Ficava na porta do barracão, olhando para ver se me deixavam passar. Aos poucos, permitiram. Aprendi a dançar direito com eles".
A sambista de 83 anos conta que pulava a janela de madrugada para sambar no barracão. "Eu era mocinha nova, meu pai tinha cuidado e por isso ia me buscar. Mas eu não namorava, não tinha malícia de nada. Tomei tanta surra do meu pai com vara de marmelo..."
Com a formação do novo grupo, seu João do Pasto assumiu a posição de tocador de reco-reco. "É um instrumento que tem ritmo para acompanhar o samba. Precisa ter ouvido para a coisa, senão não funciona", diz. "Com a música a gente se distrai e se diverte, mesmo não ganhando nada. Eu vou até o fim tocando, não desisto, não", afirma.