segunda-feira, 26 de maio de 2008

Mais um artigo do pesquisador Tárik

Samba

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A música brasileira em sua essência

Gênero básico da MPB, o samba tem origem afro-baiana de tempero carioca. Ele nasceu nas casas das "tias" baianas da Praça Onze, no centro do Rio (com extensão à chamada "pequena África", da Pedra do Sal à Cidade Nova), descendente do lundu, nas festas dos terreiros entre umbigadas (semba) e pernadas de capoeira, marcado no pandeiro, prato-e-faca e na palma da mão. Embora antes de Pelo Telefone, assinada por Ernesto dos Santos, o Donga (com Mauro de Almeida) em 1917, outras gravações tenham sido registradas como samba, foi esta que fundou o gênero – apesar da autoria discutida e da proximidade com o aparentado maxixe. Também nesse estilo ambíguo são as principais composições de José Barbosa da Silva, o Sinhô, auto-intitulado "o rei do samba", que junto com Heitor dos Prazeres, Caninha e outros pioneiros estabelece os primeiros fundamentos do setor, que ganharia uma feição mais definitiva com a chamada "turma do Estácio".


Formada por Alcebíades Barcellos, o Bide, Armando Marçal, Newton Bastos e Ismael Silva e mais os malandros/sambistas Baiaco, Brancura, Mano Edgar, Mano Rubem (uma brodagem bem anterior aos manos do hip hop), essa corrente injeta uma cadência mais picotada no samba e tem o endosso de filhos da classe média como o ex-estudante de medicina Noel Rosa e o ex-estudante de direito Ary Barroso, que redimensionam o estilo através de obras memoráveis. Com a explosão da era do rádio a partir dos anos 30, o samba ganha enorme difusão através de cantores como Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Mário Reis, Carmen Miranda - que consegue projetá-lo internacionalmente a partir do cinema - e mais adiante Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, entre outros.


Novas adesões como a do refinado baiano Dorival Caymmi, além das harmonias elaboradas de Custódio Mesquita, o molejo de Pedro Caetano, o figurino tropicalista de Assis Valente, a sobriedade de Sinval Silva, o populismo luxuoso de Herivelto Martins e o sotaque interiorano arrastado de Ataulfo Alves conduzem o samba para outros caminhos já ao sabor da indústria musical. A ideologia do Estado Novo de Getúlio Vargas contamina o cenário e do malandro convertido (O Bonde São Januário, de Ataulfo e Wilson Batista) chega-se ao samba-exaltação cujo carro-chefe, Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, torna-se o primeiro hino brasileiro no exterior.


Reconhecimento


Empurrada pela especulação imobiliária, a Pequena África já se espalha por diversos morros e primitivas favelas de onde brotam novos bambas como Cartola, Carlos Cachaça e posteriormente Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira, na Mangueira, Paulo da Portela, Alcides Malandro Histórico, Manacé e Chico Santana, na Portela, Molequinho e Aniceto do Império Serrano, entre inúmeros outros. O samba ganha status de identidade nacional através do reconhecimento de intelectuais como Villa-Lobos, que organiza uma histórica gravação com o maestro erudito americano Leopold Stokowski no navio Uruguai, em 1940, de que participam Cartola, Donga, João da Baiana, Pixinguinha e Zé da Zilda.


Depois da fundação da Deixa Falar por Ismael em 1928, a partir da reunião de blocos do Estácio, o fenômeno das escolas de samba toma conta do cenário. E propulsiona subgêneros, do partido-alto cantado como desafio nos terreiros ao samba-enredo, trilha para desfile das agremiações. Iniciadas nos moldes dos ranchos, as escolas – Mangueira, Portela, Império e Salgueiro e depois Mocidade Independente, Beija-Flor e Imperatriz Leopoldinense – cresceriam até dominar o carnaval transformando-se em show bizz, com forte impacto no movimento turístico.


As concentrações urbanas que provocaram o aparecimento das primeiras danceterias populares, as gafieiras, também produzem seu estilo próprio, o samba-choro ou samba de gafieira, crivado de síncopas. Viceja ainda desde a década de 30, o samba de breque – com pausas preenchidas por falas – que consagraria o personagem malandro criado por Moreira da Silva e o samba canção, mais lento, a partir de Ai Ioiô (Linda flor) por Araci Cortes, em 1929, posteriormente influenciado pelo bolero com enredos sentimentais de que seria expoente o gaúcho Lupicínio Rodrigues. Em outras praças, como São Paulo, onde pontificaria o satírico Adoniran Barbosa, ou Bahia, terra dos enredos tristes de Batatinha, o samba incorporava sotaques regionais.


Após a Segunda Guerra, a influência cultural americana motiva o aparecimento da bossa nova, um modo diferente de dividir o fraseado do samba, agregando influências do impressionismo erudito e do jazz, inaugurado por João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, após precursores como Johnny Alf, João Donato e músicos como Luís Bonfá e Garoto. O gênero teria toda uma geração de discípulos-cultores como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Durval Ferreira e grupos como Tamba Trio, Bossa 3, Zimbo Trio e os pioneiros vocais Os Cariocas. Na mesma época um ramal popular turbinado conhecido por sambalanço projetava o teleco-teco de Elza Soares, Miltinho, Luis Bandeira, Ed Lincoln, Luis Antonio, Djalma Ferreira e vários. Dissidências internas na bossa geraram os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Além disso, parte do movimento (re)aproximou-se do samba tradicional, revalorizando sambistas ditos "de morro" como o portelense Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e mais adiante Candeia, Monarco, Monsueto e o iniciante Paulinho da Viola.


O show Rosa de Ouro, do produtor Hermínio Bello de Carvalho, revela, além da dama do teatro de revista Araci Cortes, Clementina de Jesus, elo perdido das origens afro do samba. A exemplo de seu xará Paulo Benjamim de Oliveira da mesma escola Portela – que intermediou as relações do morro com a cidade quando o samba era perseguido – Paulinho da Viola, com sua pegada autoral mesclada ao choro, se transformaria num embaixador do gênero tradicional diante do público mais vanguardista, incluindo os tropicalistas. Também no interior da bossa apareceria um modificador do samba, Jorge Ben com seu estilo "misto de maracatu" e uma inclinação para o rhythm & blues americano, que mais adiante suscitaria o aparecimento de um subgênero apelidado suíngue.


Hora da revalorização


A princípio afastado do foco principal na era universitária dos festivais, o gênero teria sua revanche num certame específico, a Bienal do Samba e veria no final dos 60 o aparecimento do divisor de águas Martinho da Vila. Além de popularizar o partido-alto (Casa de Bamba, Pequeno Burguês), este fluminense de Duas Barras compactou o samba-enredo – forma consagrada por autores como Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola – ampliando sua potencialidade no mercado. No começo dos 70, novo surto de revalorização do samba projetaria com altas vendagens três divas Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes, além do cantor Roberto Ribeiro e dos compositores João Nogueira, Nei Lopes e Wilson Moreira. Descendente dos estilos de violão de Gilberto Gil (que endereçou o petardo Aquele Abraço para a ditadura) , Baden Powell e Dorival Caymmi, João Bosco em dupla com o poeta Aldir Blanc, renovaria o samba tradicional (inclusive o de enredo), algo que Aldir continuaria a fazer com novos parceiros como Guinga e Moacyr Luz, na década de 90. Ainda no fim dos 70, Beth Carvalho começaria a freqüentar rodas de samba do bloco Cacique de Ramos, onde descobriria o emergente movimento do pagode, desvelado em seu disco De Pé no Chão, de 1978.


Este ramal do samba, movido a partido-alto, pontuado pelo banjo e pela percussão do tantan, seria uma resposta ao ocaso do samba no início dos 80 que obrigaria os participantes a reunirem-se em fundos de quintal para mostrar suas novas composições diante de uma platéia de vizinhos. Os primeiros discos solos desses pagodeiros saíram em plena redistribuição de renda do Plano Cruzado e projetaram de imediato as artes de Zeca Pagodinho (o único que se firmaria ao fim da onda inicial), Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra e o Grupo Fundo de Quintal, que revelaria ainda a dupla Arlindo Cruz e Sombrinha. Também partideiro, o pernambucano Bezerra da Silva nesse mesmo período emplacaria seus sambandidos com enredos que documentam a guerra civil da sociedade partida.


O rótulo pagode seria usado também na década seguinte para denominar uma espécie de samba-pop inspirado na balada romântica que geraria – a partir do sucesso de grupos como o Raça Negra, Negritude Jr., Art Popular e Só Pra Contrariar – o aparecimento de um número incalculável de clones com diferentes graduações de proximidade com o samba de raiz. O tronco principal, no entanto, sobrevive alimentado pela revalorização de antigos bambas ainda em atividade como Nelson Sargento, Monarco, Noca da Portela, Wilson das Neves, Walter Alfaiate e as Velhas Guardas da Portela (vide o recente disco Tudo Azul produzido por Marisa Monte) e Mangueira, além do trabalho persistente de ativistas como Nei Lopes, Luis Carlos da Vila e Wilson Moreira.

Por Tárik de Souza em Clique Music UOL