segunda-feira, 16 de junho de 2008

Samba com Sotaque

Para alguns, sotaque, linguagem e batida dão ao samba paulista personalidade própria e peculiar. Outros nem gostam de comparar: em São Paulo, no Rio, no Brasil, é tudo uma coisa só



Por Tom Cardoso em Revista do Brasil


A imagem do Bom Jesus estava ali, nas pedras do Rio Tietê, altura de Pirapora (SP). Reza a lenda que o simples achado da peça fez um mudo falar. E desde aquele milagre, em 6 de agosto de 1725, fazendeiros de várias cidades do interior passaram a visitar o local em busca de proteção. Enquanto senhores rezavam, escravos, excluídos das cerimônias, batucavam. As romarias cresceram. Os batuques também. No lugar de caixotes, bumbos e zabumbas. Formou-se um caldeirão de ritmos, que Mário de Andrade abreviou como “samba rural paulista”. O samba rural urbanizou-se com toque interiorano.

Negros libertos das fazendas de café do interior rumavam para a capital, assim como os escravos de Santos – terra de Pai Felipe da Nação Nagô, sambista de terreiro do Monte Serrat, berço das primeiras escolas de samba da cidade, X-9 e Dois Pingüins. Em bairros nos arredores do Centro pipocaram festas de rua que mudariam para sempre o Carnaval da cidade. As escolas revelariam compositores como Eunice do Lavapés, Inocêncio da Camisa Verde, Xangô da Vila Maria, Carlão do Peruche e Nenê da Vila Matilde. No Largo da Banana, na Barra Funda, organizaram-se as primeiras rodas de capoeira, ou de tiririca, pretexto para batucar nas caixas de engraxate.

Geraldo Filme foi um dos primeiros a enaltecer as qualidades do samba paulista. Aos 10 anos, em 1937, compôs a primeira música, “Eu vou mostrar, eu vou mostrar, que o povo paulista também sabe cantar”, cantava para o pai, amante do samba carioca. As rodas de tiririca se espalharam. Toninho Batuqueiro, nascido em Piracicaba e crescido no bairro de Campos Elíseos, foi com sua caixa de engraxate batucar na Praça da Sé. Ali se formou um ponto de encontro de sambistas.

Se o samba dos engraxates, das rodas de tiririca, era carregado de malícia, Adoniran Barbosa, o mais famoso e aclamado compositor paulista, nada tinha de malandro. “E o samba de São Paulo é o de Adoniran Barbosa. Não tem malandragem nas letras, tampouco sotaque de Pirapora. É urbano, sotaque do Bexiga, italianado”, provoca Paulo Vanzolini, autor de Ronda e Volta por Cima. Para o octogenário Nenê da Vila Matilde, o samba paulista não tem cara: “É tudo uma coisa só”. Osvaldinho da Cuíca defende as origens do samba de Pirapora. Chapinha, do Samba da Vela, acha que samba combina com malandragem: “Não tenho vergonha em assumir minha admiração pelo samba do Rio, que nem é do Rio, é dos negros de todo o país”. Para T. Kaçula, do Samba Autêntico, São Paulo é cosmopolita e indecifrável: “Nunca vamos dar uma cara ao nosso samba. E isso o torna ainda mais interessante”.

A nova geração

Chapinha, Maurílio de Oliveira, Paqüera, Magnu Sousá, T. Kaçula são sambistas de primeira grandeza, que há anos vem mudando a cara da música de São Paulo. Cada vez mais jovens da periferia se interessam pelo samba, e o intenso trabalho de divulgação de dois grupos – Samba da Vela e Quinteto em Branco e Preto – e de um pesquisador incansável, T. Kaçula, tem muito a ver com isso. Magnu e Maurílio são do Quinteto em Branco e Preto, criado em 1997, na zona sul de São Paulo, e batizado pela madrinha Beth Carvalho. A história do grupo é curiosa. Magnu e Maurílio e os outros integrantes – Everson, Victor e Yvison – tocavam em bares de classe média, mas não um repertório de que gostavam. “Tinha de mandar ver Negritude Jr., Katinguelê, bandas que não faziam a nossa cabeça. Como o pessoal só pedia isso, não tinha jeito”, lembra Magnu.

O destino começou a mudar no Boca da Noite, tradicional bar do Bexiga, onde a velha guarda tocava samba bem diferente. Magnu conta que o dono do bar, o advogado e sambista Wilson Sucena, deu uma bronca geral. “Vocês ficam tocando pagode de terceira qualidade para a burguesia enquanto os branquelos daqui cantam samba de verdade e também ganham dinheiro.” Os “branquelos” eram uma galera da pesada, comandada por Eduardo Gudin. Magnu nunca mais precisou cantar que “a barata da vizinha está na sua cama”. Ele e Maurílio, meio sem querer, acabaram participando de outro momento importante para a música de São Paulo, junto com Chapinha e Paqüera.

Numa noite de segunda-feira, reuniram-se num velho armazém da Rua Dr. Antônio Bento, no bairro de Santo Amaro, com a idéia de juntar quem gostasse de samba e tocar até a meia-noite, já que todos acordavam cedo para o trabalho. “Estava tão bom que a gente tocou até de manhã, perdemos o controle”, conta Chapinha. Na semana seguinte, outro “descontrole”. Maurílio aconselhou a compra de um despertador. Magnu, de uma ampulheta. Chapinha sugeriu um galo. Paqüera acabou com a discussão: acender uma vela e, quando se apagasse, seria hora de ir. Nascia o Samba da Vela. O movimento reúne sambistas de todos os estilos e virou espaço cultural, com exposições de arte e saraus. Vale até rap ou sertaneja. “Aqui pode tocar de tudo. Quem manda é a vela”, brinca Chapinha.

Do outro lado da cidade, na Vila Madalena, zona oeste, no bar Ó do Borogodó, o músico T. Kaçula lidera um trabalho de valorização do samba paulista. Pela casa passaram músicos de todos os estilos e gerações, dispostos a tocar como Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Osvaldinho da Cuíca. Kaçula, líder do grupo Samba Autêntico, acertou recentemente uma parceria com Guga Stroeter, dirigente da ONG Sambatá, para lançar uma coleção de 12 discos de samba paulista. “Vai ter de tudo.” Os shows do Ó do Borogodó revelaram uma cantora talentosa, fã de Leny Andrade, Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida: Fabiana Cozza. “Há muitos jovens hoje interessados em redescobrir e difundir o samba”, diz a cantora. “E o Ó do Borogodó segue como vitrine de tudo isso. Tocam lá violonistas como Zé Barbeiro e Luizinho 7 Cordas e uma nova geração espetacular de músicos.”

Sambista sem varizes


Bons tempos aqueles em que se podia engraxar os sapatos na Praça da Sé e ouvir um Germano Mathias aos seus pés. Germano é representante do samba sincopado, apreciado por nomes como Geraldo Pereira, Blecaute, Jorge Veiga, Ciro Monteiro, Ary Cordovil e o gaúcho Caco Velho. “Sou português por parte de mãe, carioca por parte de pai e crioulo por parte do vizinho do meu pai”, explica, bem-humorado, sua paixão pelo samba.

Aos 72 anos, Germano preserva o jeito moleque dos tempos em que cabulava aula para cantar samba sincopado, nos anos 50. Metade da turma lustrava sapatos e os outros batucavam. Nascido no Pari, zona leste de São Paulo, saiu direto do centro da cidade para brilhar na Rádio Tupi. “Na rádio, achavam que eu era um cantor negro, por causa do balanço da minha voz. Só perceberam que eu não passava de um branquelão quando apareci na TV”, conta, orgulhoso.

O primeiro sucesso foi Minha Nega na Janela, de 1956. A Situação do Escurinho foi uma parceria com o compositor carioca Padeirinho surgida por acaso. “Eu estava jogando sinuca e um amigo, Aldacir Louro, disse que tinha um samba de um tal Padeirinho que era a continuação do Escurinho, sucesso do Cyro Monteiro. Gravei e estourei. Ganhei o prêmio Roquete Pinto. Hoje só ganho pinto”, brinca. Germano mora num modesto apartamento no Jardim Líder, periferia de São Paulo, e luta para sobreviver como músico. “Poucos cantam samba do meu jeito. Essa é a minha principal arma. Tem muito cantor novo aí que tenta cantar sincopado, mas não sabe dividir, não teve a escola que eu tive. Acho que sou o último dos moicanos.”

Nenê da Vila Matilde

Desde 1997, Nenê da Vila Matilde não é mais presidente da escola que leva seu nome, a terceira mais antiga de São Paulo, fundada em 1949. Aos 86 anos, ainda influi em decisões, dá pito nos dirigentes, reclama do samba-enredo e não poupa a turma da bateria. “Os caras não mudam nada, não renovam. A bateria está uma porcaria”, reclama. Em 1956, quando a escola começou a se tornar repetitiva, ele seguiu o conselho do pai, o carioca Aldantino, ou Mulato Véio, e viajou para o Rio em busca de inspiração. Voltou com uma nova batida na manga, o “culungundum”, mistura de maracatu com percussão, que revolucionaria o morno Carnaval paulistano. “Ouvi jongo numa igreja da Penha, passei pelas rodas da Lapa. E fiquei apaixonado pela batida da Mangueira. A batida de caixa, o estilo do surdo, era tudo diferente”, lembra. “Mostrei para o Paulistinha (compositor da Nenê), ele acrescentou o chocalho no meio da bateria. O pessoal do Peruche, da Vai-Vai ficou de boca aberta, escutavam de longe. Hoje a nossa bateria não faz mais barulho.”

Nenê, mineiro de Santos Dumont, chegou a São Paulo com 7 anos. À frente da escola mais popular da zona leste por quase meio século, tem orgulho de várias passagens. A introdução da batida do “culungundum” foi um marco, e só não dura até hoje, segundo ele, por falta de competência dos atuais mestres de bateria. “Eles não agüentam o tranco”, critica o sambista. Nenê foi um dos mais enfáticos a cobrar da então prefeita Luiza Erundina a construção de uma passarela do samba em São Paulo. “Fui pessoalmente exigir. Reclamei mesmo”, conta. Em 1991 Erundina inaugurou o sambódromo paulistano. O mestre rejeita comparações entre São Paulo e Rio. “Samba é samba em qualquer lugar. A diferença é o dinheiro. Os sambistas de lá nasceram com o bumbum pra lua. Aqui, não. Os políticos tiram dinheiro da gente e os caras que compram as escolas são tudo brancão ruim de samba.”

Paulista da gema


No começo dos anos 60, num boteco da Rua da Consolação, Osvaldinho da Cuíca comprou uma discussão com Adoniran Barbosa: existe ou não um samba genuinamente paulista ou samba é samba em qualquer cidade do Brasil? Para o autor de Saudosa Maloca, samba era uma coisa só: brasileiro e fim de papo. Osvaldinho, então no grupo Acadêmicos da Paulicéia, bateu o pé: o samba paulista tinha, sim, linguagem própria, interiorana, com uma levada “calangueada”. O próprio Adoniran era uma prova de sua teoria. Mas não teve acordo. Ficaram de cara amarrada até Osvaldinho gravar, em 1967, Mulher, Patrão e Cachaça, de Adoniran, que lhe valeu o convite para integrar os Demônios da Garoa.

Agora, Osvaldinho volta à polêmica. Para ele existe um samba paulista, genuíno, valente, que precisa ser resgatado com urgência. “Até os mais estudiosos, como o pessoal do Quinteto em Branco e Preto, do Samba da Vela, fazem samba carioca sem saber. Compõem no padrão da Velha Guarda da Portela, têm vergonha de cantar com sotaque paulista”, afirma. “Há um certo preconceito com o sotaque. Por exemplo, a apresentadora Angélica nasceu na Mooca e aparece na televisão puxando erres e esses. Eu fico puto.”

Osvaldinho não renega as influências cariocas. Tocou com quase todos os grandes compositores do Rio, de Ismael Silva a Nelson Cavaquinho. “Só não gravei com Roberto Carlos e Chico Buarque”, diz. “Quando gravei Mulher, Patrão e Cachaça fiz um sucesso danado no Rio. Todos queriam saber quem estava tocando cuíca daquele jeito tão diferente”, lembra. Fundador da ala de compositores da Vai-Vai, o mestre é de opinião que o Carnaval paulista evoluiu, embora lamente algumas perdas. “Ganhou em profissionalismo, é um espetáculo muito bem organizado. O samba-enredo perdeu qualidade. Mas mesmo com essa neurose toda, com dez compositores para fazer um samba, você sempre acha alguém bom. Só não venha dizer que essas marchas, tocadas em velocidade, podem ser chamadas de samba. Não é, não.”