Esta história e suas conseqüências são ricamente contadas no documentário Samba à Paulista - fragmentos de uma história esquecida. O documentário realizado por alunos da Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP resgata, através de depoimentos e vídeos antigos, a história daquele que é o mais característico ritmo musical brasileiro.
Carlão do Peruche que acompanhou de perto a mudança dos cordões para escolas de samba.
Quando os negros chegam das lavouras de café à capital após a instauração da Lei Áurea de 1888, trazem consigo toda a cultura musical do interior. A cidade não os aceita e eles partem para a periferia em um movimento urbanístico de marginalização. Nas fronteiras da cidade, eles constroem centros de resistência e terreiros onde podem desenvolver sua cultura. “Entender a participação do negro neste movimento é a parte mais ensaística do documentário. Trabalhamos com depoimentos como gancho para contar esta história e usamos os raros textos que a retratam para ajudar a compor o cenário”, explica Gustavo Mello, diretor do documentário.
Dionísio Barbosa, fundador do primeiro cordão de São Paulo
“Esses negros trouxeram para São Paulo o mesmo ritmo que levaram para a Bahia ou para o Rio de Janeiro, mas aqui isso se perdeu”, aponta Eduardo Piagge, assistente de direção e pesquisador. Em São Paulo, o negro não conseguiu se integrar à sociedade e assim como seu samba de batuque tornou-se elemento marginal até meados do século 20.
Já no Rio de Janeiro, cidade que mais tarde seria modelo de Carnaval para São Paulo, os poetas e compositores abraçaram esse ritmo popular e improvisado. Com a ajuda da Rádio Nacional, a urbanização do samba rural foi difundida e popularizada. “O que mais difere no Rio foi a receptividade do espaço urbano a este movimento rural. Lá, eles estão mais próximos dos morros onde se desenvolveu o ritmo e mais para frente você vê as autoridades visitando os galpões das escolas de samba. Em São Paulo há este movimento de urbanização, mas não há a difusão como houve no Rio”, conta Mello.
Dionísio Barbosa e os cordões – A história do samba em São Paulo é feita de alguns grandes nomes. Um deles e talvez o primeiro é Dionísio Barbosa, negro da primeira geração de escravos livres que veio para a capital em busca de oportunidades como liberto. Aqui, foi para a Barra Funda, reduto negro da cidade.
Nascido em 1891, Dionísio uniu a expressão do interior paulista com a influência do samba do Rio de Janeiro, onde conheceu a Festa da Penha e todas as tradições carnavalescas cariocas. Em 1914, reuniu sua família e foi para as ruas festejar, cantar e tocar o samba que iniciou a tradição dos cordões. “Ele é emblemático porque cria essa manifestação genuína que é bem típica de São Paulo. Já havia na cidade eventos carnavalescos, mas eram manifestações da classe rica e branca. O Cordão Barra Funda era o primeiro movimento cultural organizado dos negros, o primeiro cordão da cidade, algo pequeno, composto por 15 a 20 pessoas”, explica Mello.
No Cordão da Barra Funda, os homens ensaiavam e desfilavam pelas ruas vestidos com camisas verdes e calças brancas. Este movimento foi o embrião do hoje Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco.
Mais do que um grupo que desfilava no carnaval, o cordão era um espaço de identidade reativa dos negros onde eles cultivavam todos os elementos de sua cultura. “O cordão era o espaço deles, onde realizavam bailes, cortejos e até piqueniques com elementos típicos de sua culinária em Santos ou no interior. O samba era uma parte dessa manifestação cultural”, conta Piagge.
Logo os cordões vão surgindo pelos bairros e terreiros ocupados pelos negros, como a Baixada do Glicério e Bexiga. Na época do Carnaval, os negros se fantasiavam de corte européia, com direito a rei, rainha, conde, duquesa e toda a linhagem real. Nas imagens recuperadas de um documentário de 1937, os negros dançam com suas perucas brancas e roupas elegantes levando os estandartes com o nome do grupo. À frente, vinha a baliza, alguém habilidoso que fazia diversas piruetas com um bastão. Atrás, a bateria formada por instrumentos de sopro, violões e muitos surdos, liderados por um apitador.
Saindo de seus territórios de periferia, os negros invadiam os espaços tipicamente brancos causando reações agressivas por parte de uma sociedade ainda acostumada com a escravidão. “Muitas vezes, as camadas com mais dinheiro jogavam bexigas com urina ou mesmo agrediam fisicamente os participantes dos cordões. A maioria deles preferia usar a força policial para reprimir a manifestação popular negra na cidade, assim os policiais levavam instrumentos ou mesmo prendiam membros”, conta Mello.
Dos cordões às escolas — Em meados do século 20, as escolas de samba começaram a sufocar os cordões. Inspirada pelo sucesso do Carnaval carioca, a população branca começa a se envolver no movimento e até a fundar suas próprias escolas. “Começaram a surgir mais escolas de samba do que cordões pela cidade. Mudou a manifestação. Não que tenha sido ruim, mas essa influência do Rio de Janeiro acabou sublimando um movimento típico de São Paulo”, afirma Mello, diretor do documentário.
No início, era uma manifestação amadora. As escolas ainda eram majoritariamente negras e pobres e não tinham verbas para sustentar um desfile luxuoso de fantasias e carros alegóricos. Para pagar os custos, eles passavam a taça do ano anterior para que os membros contribuíssem.
Já em 1967, com a ditadura militar recém-instaurada no País, o governo decide oficializar o Carnaval paulistano como forma de distrair o povo da repressão política. “O que era mais fácil para iludir o povo? Futebol e Carnaval”, relata Evaristo de Carvalho, radialista que participou deste movimento.
No entanto, o então prefeito de São Paulo Faria Lima, um carioca de Vila Isabel, não confiava nos dirigentes das escolas para cuidar da verba. Assim, decidiu repassá-la para a Rádio Record. Os papas do samba ficaram indignados e decidiram unir-se para garantir que no ano seguinte eles recebessem o dinheiro diretamente. Elegeram como porta-voz Moraes Sarmento, que ficou encarregado de falar com o prefeito.
Aceita a proposta de Sarmento, Faria Lima exigiu que o Carnaval paulistano tivesse a mesma estrutura e organização do evento carioca. Com a conivência dos sambistas, foi imposto às escolas daqui o mesmo regulamento das do Rio de Janeiro, que determinava todos os detalhes da apresentação e do julgamento dos desfiles. “Segundo os pesquisadores, importar o modelo do Rio foi a forma encontrada pelos sambistas de São Paulo para legitimar seu movimento, de fazê-lo aceito e valorizado pela parcela da sociedade que agredia os negros do cordão. E muitos desses sambistas viam no modelo carioca o verdadeiro modelo de Carnaval”, relata o diretor.
Com a adoção do modelo carioca, os cordões que antes se espalhavam pelas ruas de toda a cidade foram concentrados em duas avenidas da capital: São João e Tiradentes.
Já no início dos anos 90, durante o governo da prefeita Luisa Erundina foi criado o Sambódromo do Anhembi, local onde se concentra o Carnaval paulistano até hoje. “Hoje não tem mais Carnaval, tem desfile. Estamos confinados no Sambódromo”, critica Carlão, “embaixador” da Unidos do Peruche que foi acompanhado pela equipe do documentário durante todo o dia de desfile de sua escola no Carnaval de 2006. “Hoje o ônibus vai à quadra, apanha as alas, leva para o Sambódromo, descarrega na concentração, vai para a dispersão, para o desfile, sobe no ônibus e vai para a quadra. Lá, põe a roupa e vai embora”, resume o radialista Evaristo de Carvalho.
Com o confinamento no Sambódromo, o Carnaval perdeu não só espaço como a participação popular, sua característica mais marcante. “Não pertence mais ao povo, ao pobre. Pertence a quem pode pagar, a quem tem dinheiro”, critica o sambista Oswaldinho da Cuíca.
Oswaldinho da Cuíca
Para o pesquisador Eduardo Piag-ge, a única Escola de Samba que mantém um pouco da tradição dos cordões é a Vai-Vai. Segundo ele, ela apresenta um samba de som mais forte e mais similar às marchas de tradição rural, graças à sua bateria mais pesada, com destaque para os surdos espalhados entre os diversos membros.Terra das oportunidades – Mas não era só no Carnaval que se fazia samba. O ritmo contagiante inspirou sambistas do Rio e de São Paulo, que, cada qual a seu jeito, começaram a desenvolver o novo ritmo para as rádios nacionais. Manteve-se o batuque pesado do samba rural como fundo para letras agora com estrofes e refrões. Era o samba rural urbanizado que ganhou o País em músicas como Está chegando a hora, de Henricão, compositor do primeiro samba da Vai-Vai, em 1928.
Se no Rio de Janeiro o Carnaval virava modelo para o País, era em São Paulo que os sambistas viam o dinheiro e as oportunidades em casas como o Jogral e Oba Oba. Assim, os nomes mais talentosos migraram para cá em busca de trabalho e de espaço para cantar. “Martinho da Vila conta que todo o início de sua carreira foi aqui em São Paulo. Aqui tinha espaço e público. Mesmo nos anos 60, os sambistas de São Paulo ainda não tinham se consolidado como grandes cantores. A única exceção é o Adoniran Barbosa e mais tarde o Germano Matias. Quem fazia sucesso era mesmo os cariocas”, aponta Piagge.
O Carnaval é hoje um dos eventos mais aguardados por brasileiros e até estrangeiros, mas há mais heranças deste samba rural dos negros espalhados pelo Estado.
A essência do samba familiar permanece viva em grupos do interior paulista como o Samba de Bumbo em Vinhedo e o Tambu de Piracicaba. “São as manifestações mais fortes deste samba do século 19 que encontramos, movimentos que se mantêm por uma tradição familiar ao longo das décadas”, cita Piagge.
Mas como toda manifestação cultural, a história do samba rural é viva e constantemente reconstruída sob as influências dos novos tempos. O samba de hoje mantém o batuque, mas conta uma outra história. Uma história miscigenada de brancos e negros, de outras dificuldades, alegrias e tristezas e que está se perdendo a cada nova geração.
Os depoimentos de sambistas do interior ilustram bem a mudança na interação do batuque com a comunidade. “Ao mesmo tempo em que esses grupos mantêm o samba de batuque por uma tradição familiar, é cada vez mais evidente seu enfraquecimento nas cidades. Quando fomos para Tietê filmar a festa de lá, ninguém sabia dizer onde ou mesmo quando ela acontecia”, revela o diretor Gustavo Mello.
No outro lado estão aqueles que na ânsia de preservar uma história por tanto tempo marginalizada vêem o samba rural como um folclore. “É muito complexo aceitar esta herança e deixá-la em aberto para que ela sofra as transformações naturais da cultura. As pessoas entram num radicalismo que se fecha em si mesmo e que não aceita a pluralidade do movimento”, critica Piag-ge.
Cena do Tambu de Piracicaba que mantém a tradição do samba rural
Samba à Paulista não se propõe a dar um final para a narrativa. Ele deixa ao espectador a oportunidade de pensar naquela que é sua principal questão: o que fazer com esta história? Para tal, oferece os depoimentos de defensores da tradição e aqueles que tocam o samba urbano, influenciado pelo movimento do Rio de Janeiro. “Nós não queremos fazer o documentário definitivo do Samba de São Paulo. Nós sabemos que se esse documentário for feito daqui a dez anos, vai ser diferente. É um processo em constante mudança e nosso documentário está dentro disso”, resume Mello.
Serviço
Além da exibição na TV Cultura, o grupo pretende mostrar o documentário em escolas, museus e centros culturais, além de disponibilizar o conteúdo das 160 horas de filmagem para consulta pública.
Mais informações sobre o Samba à Paulista podem ser encontradas no site do documentário, www.sambaapaulista.com.
A avó das escolas de samba
Madrinha Eunice, criadora da Lavapés, a primeira escola de samba de São Paulo.
Fundada na Baixada do Glicério em 1937, a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva Lavapés foi a primeira Escola de Samba de São Paulo. Sob a presidência de Madrinha Eunice, a escola encantou a cidade com seus desfiles e tornou-se a mais importante manifestação do Carnaval paulista nas décadas de 40 e 50. “Ela foi 19 vezes campeã na sua época de ouro. Ganhava de todos”, conta Mello, diretor do documentário.
Apesar do título de escola impresso em seu estandarte, a Lavapés tinha todos os elementos de um cordão: a corte, os instrumentos de sopro e os violões. Seus membros desfilavam entoando as marchas de sucesso na rádio, como as de Carmem Miranda, fator que contribuiu para seu enorme sucesso. De suas alas e bateria saíram alguns dos fundadores das grandes escolas do Carnaval paulistano. “Vila Maria, Unidos do Peruche. Muitos passaram por aqui, aprenderam por aqui e depois fundaram a (escola) deles. Por isso considero a Lavapés a avó das escolas”, gaba-se Madrinha Eunice em uma entrevista de arquivo recuperada pela equipe do documentário.
Hoje confinada à casa de Rose, neta de Madrinha Eunice e atual presidente da sociedade, a Lavapés sobrevive no ostracismo do segundo grupo. Espalhadas pelos cômodos da casa, as fantasias são preparadas pelos membros da comunidade. Nas ruas em que ela desfilava, hoje se vê apenas carros e pedestres que por ali passam sem saber dos dias de glória na Rua do Glicério. “O Carnaval começou a evoluir muito e ela não acompanhou, ficou nos mil novecentos e nada”, avalia Rose sobre a decadência da escola. “Um dia ela foi campeã hegemônica, hoje ninguém ouve mais falar dela. É o caso mais expressivo de como esta memória está se perdendo e para mostrar que não é uma história só de flores, mas também de perdas”, analisa Piagge, pesquisador do documentário.