Retirado do
RODRIGO SIQUEIRA
Bandolins estão nas prateleiras e em mãos hábeis na antiga loja
Depois de inaugurar uma pequena oficina de consertos de instrumentos musicais, em 1958, o comerciante Miguel Fasanelli, 70, aos poucos inscreveu seu nome na história da dupla de ouro da música brasileira. Não pense o desavisado que a referência o vincule diretamente aos Chitões, filhos de Franciscos e outros assemelhados da música sertaneja industrial. Trata-se de um dos maiores incentivadores da dupla samba e choro na capital paulista.
Localizada no número 46 da rua General Osório, a duas quadras da Sala São Paulo, a loja Contemporânea Instrumentos Musicais abriga uma das mais tradicionais rodas de choro da cidade. A nona vídeo-reportagem da série Samba SP, do UOL, partiu, numa chuvosa manhã de sábado, para conferir as harmonias e melodias que vibram todas as semanas nos fundos da loja.
Imagine-se a hipotética situação de um músico aprendiz que, nos idos da década de 1960, entrasse numa loja de instrumentos musicais para comprar uma palheta e desse de cara com uma roda de choro formada por Jacob do Bandolim, Plauto Cruz, Peri Cunha e Darci Alves (os três últimos do time que acompanhava Lupicínio Rodrigues). O resultado não poderia ser outro. Qualquer cidadão que não fosse ruim da cabeça ou dos ouvidos pararia em um canto e ficaria ali horas e horas até que vibrasse a última corda de um violão ou de um bandolim.
Como São Paulo tem doidos, mas também tem muita gente que aprecia a boa música, o hipotético aprendiz não ficou sozinho encostado no balcão. Centenas de outros aprendizes de verdade, músicos amadores e profissionais de altissimo gabarito formam, há cerca de 40 anos, a roda de choro da Loja Contemporânea, no centro de São Paulo. Uns tocam, outros apenas escutam e apreciam.
A roda acontece todos os sábados entre 9h e 14h. Vêem-se sobretudo pessoas de cabeleiras brancas empunhando os violões de sete cordas, os cavaquinhos, pandeiros e bandolins. Alguns são músicos profissionais, outros, diletantes. A maioria tem longa ficha corrida no choro. "A loja abre às 9h e, quando dá 8h30, já tem gente esperando na porta pra tocar", diz Fazanelli, referindo-se aos seus grisalhos contemporâneos.
De vez em quando, costuma aparecer um jovem talento desinibido para entrar na roda e acompanhar os experientes chorões. Mas tem de ser excelente músico para encarar a peleja. "Aquele que não sabe nem encosta para tocar", conta o dono da loja.
O público, que fica em bancos na sala dos fundos da loja, é formado por gente de todas as idades e classes sociais, mas que tem a música como interesse transversal. É comum ver até uma dezena de pessoas com os olhos fechados, absorta nos longos solos improvisados de violão e bandolim.
Samba e choro na beira do balcão
O espaço da Contemporânea extrapola as relações comerciais de compra e venda de beirada de balcão. Desde a década de 1960, a loja é um ponto de encontro de músicos profissionais e amadores de São Paulo e de outros Estados. A capacidade de Fasanelli de construir amizades entre os músicos foi o atrativo para que a sua loja se tornasse um ponto de referência na cidade.
No começo dos anos 1960, as escolas de samba da capital amargavam grandes dificuldades para levar o Carnaval às ruas. Os representantes das agremiações costumavam passar uma taça nas ruas de comércio para levantar dinheiro para os desfiles. Mesmo assim, as escolas não conseguiam recursos para cobrir todas as despesas. "Eles não tinham verba, encomendavam os instrumentos, mas não tinham dinheiro pra pagar. Se um instrumento custava 10 e eles tinham 2, levavam o instrumento e pagavam bem depois. E assim a gente ia ajudando."
Frequentador da Contemporânea "há mais de 40 anos", Airton Santa Maria, membro da velha guarda da escola de samba Camisa Verde e Branco, acrescenta que "até doação de instrumento ele fazia. A gente não tinha condição e ele ia até a Barra Funda (reduto da Camisa Verde e Branco) levar os instrumentos".
A proximidade entre os batuqueiros e Fasanelli permitiu a formação de parcerias para desenvolver novos instrumentos de percussão. "As escolas de samba saíam com instrumentos de banda, de fanfarra, era instrumento pequeno. Então a gente desenvolveu o surdo de marcação, fez o surdo `treme-terra´, que era um absurdo pra época, de tão grande", revela.
Outros instrumentos vieram depois, como a timba. "Eu fui um dos primeiros a tocar a timba feita pelo Miguel. Eu, o Waltão e o João Parahyba, do Trio Mocotó. Na época a loja era pequenininha", lembra Luis Carlos César, músico profissional há mais de 40 anos e também frequentador da General Osório.
O começo da roda da Contemporânea data também dos anos 1960. Enquanto Miguel ajudava os sambistas paulistanos, dava ainda guarida musical aos que chegavam de fora. "Vinham os músicos cariocas fazer show em São Paulo, mas eles não tinham onde tocar de dia. A noite acabava cedo, então eles iam dormir e de manhã vinham tocar na loja." Fasanelli orgulha-se de ter recebido várias vezes nas rodas de samba de sua loja músicos como Cartola, Nelson Cavaquinho, Clara Nunes, Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola.
Os chorões começaram a marcar ponto na loja pelo mesmo "problema" dos sambistas de fora de São Paulo. Quando Lupicínio Rodrigues vinha fazer shows (noturnos) na cidade, os músicos que o acompanhavam, Plauto Cruz, Peri Cunha e Darci Alves, entre outros, não tinham o que fazer durante os dias e baixavam na Contemporânea.
Jacob do Bandolim, um dos maiores chorões que o Brasil teve, foi levado à Contemporânea por Antônio D´Auria, seu parceiro, que possuia uma loja de equipamentos de cinema na região e já frequentava a loja de Fasanelli.
Povoada por compositores, instrumentistas, estudiosos e admiradores de música, a loja segue a alimentar os acordes harmônicos e o bater do pandeiro que atrai e enlaça as pessoas em torno das cordas dos bandolins e violões. Jamil Karan, que ostenta cabelos brancos e uma paixão pela música dignas da roda da rua General Osório diz que a freqüenta há 12 anos. "Eu fiquei sabendo por um amigo que tinha essa roda aqui e passei a vir todos os sábados", diz Karan. Paulo Cerantula, que comparece na roda há 8 anos, diz que descobriu a Contemporânea por um atributo nato dos chorões. "O chorão sempre sabe onde tem um bom choro, e onde tiver ele vai estar lá".
Dona Inah, que estreou em disco aos 69 anos e venceu o prêmio Tim de Música 2005 como revelação, aos 70, se diz atraída pela boa música da Contemporânea há mais de 10 anos. Aliás, música com a qual contribui. Com um "sete-cordas" na mão, o sr. Karan pergunta à reportagem: "está gravando? Então grave aí que esta é a melhor cantora do Brasil".
E ela põe-se a cantar: "Todo verso triste que eu puser numa canção / é o meu coração que chora / E eu fiquei assim quando você / Sem dizer adeus foi indo embora / Pela minha voz e meu olhar todos verão / Como vivo triste agora / E eu não posso mais com a minha dor / Porque qualquer canção de amor / Me dá vontade de chorar."
Roda de Samba e Choro
Todos os sábados das 9h às 14 horas - Grátis
Rua General Osório, nº 46 - Luz - Centro de São Paulo