quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Carlão do Peruche conta a história do samba de São Paulo



Retirado do 


POR RODRIGO SIQUEIRA


Em 4 de janeiro de 2006, o Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Unidos do Peruche completou 50 anos de existência. Um dos fundadores da escola, na zona norte da cidade, é um batalhador pelo samba e pelas tradições afrodescendentes de São Paulo. Ele foi registrado como Carlos Alberto Caetano, 75, mas é conhecido como o Carlão da Peruche.


Carlão do Peruche conta a história dos primórdios do samba em SP


Além de ser um personagem importante da história do samba paulista, condecorado embaixador do samba pela União das Escolas de Samba de São Paulo, Carlão é um exímio contador de histórias. Como um griô (poeta, cantor, músico e mago africano), ele carrega consigo a sabedoria de quem muito viveu e aprendeu com os mais velhos. 

Para a quinta vídeo-reportagem da série Samba SP, do UOL, o faz-tudo aqui assinado fez também questão de subir a rua Zilda até o alto da Casa Verde para buscar seu Carlão em casa. Negro, esguio, e aparentando muito menos que os 75 que tem, ele saiu de casa ligeiro, ainda mastigando o almoço, e, antes de tudo, desculpou-se pelo atraso de 15 minutos (que, acredite-se, não existiu). "Estava ajudando a resolver os sapatos das mulheres. Eu achei que tava tudo pronto e, quando fui ver, tava tudo atrasado. E o Carnaval já está aí". 

No caminho para a quadra da Peruche, já se pode entender um pouco do espírito aguerrido de seu Carlão. "Se uns 30 anos pra trás, ou 40, falasse que chegaríamos a este estágio, iam dizer que era uma utopia. Já são 50 anos." 

A iniciação musical do então garoto Carlos Caetano foi no jongo, em Pirapora do Bom Jesus, a 54 km da capital. Filho de pais religiosos, ele ia com a família para a festa que lá ocorre todos os anos, no dia 6 de agosto. Enquanto a mãe ia para a igreja, seu pai o levava para um barracão onde tinha jongo, uma forma de samba rural comum no interior do Estado de São Paulo, Rio e na zonda da mata mineira. 


"Os homens ficavam pra um lado e as mulheres pro outro, e tinha o pai do samba, que tocava um bumbão grande (chamado tambu, no interior de São Paulo). Pra cantar tinha que pôr a mão no bumbo e pedir a autorização do pai do samba. Então podia cantar: ´em Tietê, fizeram cadeia nova, em Tietê, fizeram cadeia nova. Mariazinha, coitadinha criminosa. Mariazinha, coitadinha criminosa.` Eu me lembro quando eu botei a mão no bumbo pela primeira vez." , conta e canta Carlão em sua destreza forjada na tradição narrativa oral.

Ao ouvir Carlão contar histórias e cantar com voz e melodia apuradíssimas, torna-se difícil compreender por que a classe média paulistana paga ingresso para ver a velha guarda do Rio de Janeiro, compra disco de samba carioca e até desce ao litoral para freqüentar ensaios das escolas de samba cariocas, mas não é capaz de atravessar a Ponte do Limão para conhecer a profícua produção paulistana. Na região da Barra Funda e Casa Verde (sem contar as outras escolas espalhadas pela cidade), há diversas escolas com sambas e sambistas dignos de nota.

Carlão não só fundou a Peruche como militou e milita pela tradição do samba paulista. "O andamento do samba era mais lento. A batida veio do jongo, não isso que a gente vê na avenida. Hoje as escolas não desfilam. Isso aí é uma grande procissão", diz. 

A Peruche já nasceu, em 1956, como escola de samba, ao contrário de outras agremiações paulistanas que são derivadas dos cordões carnavalescos. Mas Carlão destaca que os cordões sempre representaram melhor as tradições do samba paulista. Nos cordões, a batida forte e de sonoridade grave, herdada dos bumbos e tambus do jongo e dos outros batuques rurais paulistas estavam muito mais presentes. 

A descaracterização desse samba tradicional dos cordões tem razões várias. Um dos motivos é que o samba martelado pelas rádios de abrangência nacional, mesmo as com sede em São Paulo, assim como as a indústria do disco eram, em maioria, do Rio de Janeiro.

O carnaval do tempo do bonde e dos cordões acabou mais ou menos na mesma época. Uma grande contribuição veio do bem intencionado Faria Lima. O prefeito com fama de bom administrador e "obreiro" (fez, na capital, 51 pontes e viadutos, construiu os 45 km das marginais do rio Tietê e iniciou as obras do metrô) conduziu o último bonde em 1968, ano em que teve uma lendária reunião com representantes do Carnaval de São Paulo. 

Nessa reunião, estavam presentes vários dos grandes batalhadores do samba paulista, entre eles seu Nenê da Vila Matilde, Pé Rachado, o radialista Evaristo de Carvalho, Mala da Acadêmicos do Tatuapé, Xangô da Vila Maria, a madrinha Eunice da Lava Pés e também o Carlão da Peruche. "Nessa situação eu passei uma das maiores vergonhas da minha vida", revela Carlão. 

Depois de "levar canseira" de vários prefeitos nos anos anteriores, eles marcaram uma audiência com o prefeito Faria Lima, que era carioca. Pelas falsas promessas anteriores, não levaram nada, nenhum planejamento para o Carnaval, calejados que estavam. Chegaram descrentes, mas acabaram sendo bem recebidos pelo adminsitrador. O prefeito ouviu as reivindicações dos sambistas e acrescentou que era do ramo e saía na Mangueira. 

Carlão conta que virou para o Mala do Tatuapé, que estava ao seu lado, e sussurrrou: "Olha, ele está querendo ser elegante com a gente, do mundo do samba, falando que sai na Mangueira. Isso não vai dar em nada". Ao fim da reunião, o prefeito disse que pensaria no assunto e pediu aos sambistas que levassem um planejamento.

Eles correram, fizeram todo o levantamento de estrutura e custos e, na semana seguinte, levaram para apresentar ao prefeito.

Ao ver o planejamento e os custos do Carnaval, o prefeito perguntou: "é só isso que vai custar para mim? Vamos fazer o Carnaval." Mas a surpresa e a vergonha de Carlão da Peruche veio quando ele soube que o prefeito havia lido seus lábios na reunião anterior quando comentara com Mala sobre a suposta "elegância" do prefeito carioca . 

O prefeito Faria Lima enfiou a mão no bolso, sacou uma carteirinha da Mangueira e o apresentou na frente de todos na mesa de reuniões: "Olha seu moço, eu saio na Mangueira". E Carlão confessa, enfático, "a minha cara queimou, viu? Foi uma das maiores vergonhas que eu passei na minha vida. De negro, branco não, mas acho que eu fiquei cinza de tanta vergonha. Ele não tava fazendo média." 

Mas, como as boas intenções de políticos não necessariamente dão bons resultados, a oficialização do desfile das escolas de samba de São Paulo trouxe um grande ônus cultural. A prefeitura do mangueirense Faria Lima importou do Rio o regulamento do desfile das escolas de samba de lá. As novidades acabaram por forçar, em 1972, a derradeira transformação dos cordões carnavalescos em escolas de samba. Os últimos cordões que resistiam eram o Vai Vai e o Camisa Verde e Branco. Foram-se então os cordões junto com os bondes, pilotados pelo finado Faria Lima.