quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sambeabá - O samba que não se aprende na escola


Retirado do
 



Publicado originalmente em 27/01/2003

Título: Sambeabá - O que não se aprende na escola
Autor: Nei Lopes
Ilustrador: Cássio Loredano
Editoras: Casa da Palavra e Folha Seca
Previsão de lançamento: 18 de fevereiro de 2003

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Sambista de primeira e, também, especialista de primeira em samba, Nei Lopes vai expor seus conhecimentos e suas vivências em "Sambeabá - O que não se aprende na escola", livro com intenções didáticas para leitores leigos, mas que poderá atrair também os antigos amantes do gênero. Co-produção da Casa da Palavra e da Folha Seca, o livro será lançado em fevereiro. Aqui você já pode ler uma parte do terceiro capítulo, chamado "O império do samba"


Do Berço à Maioridade

O samba urbano nasce na Praça Onze de Sinhô; ganha forma no Estácio de Ismael Silva; lapida-se em torno da Vila Isabel de Noel Rosa; e se consolida em duas vertentes principais: a de Ary Barroso e a de Ataulfo Alves.

Nascido em 1888, na rua do Riachuelo e criado na Senador Pompeu, no centro do Rio, José Barbosa da Silva, o Sinhô, era um típico representante daquela pequena burguesia carioca tão bem retratada por Lima Barreto. Mulato, filho de pintor-artístico, decorador de paredes de bares e clubes recreativos, aos 12 anos, estudante compulsório de flauta, começa a dedilhar o indefectível piano doméstico, presente em todas as casas pequeno-burguesas da época.

Já adolescente, volta-se também para o cavaquinho e, depois, para o violão, mas sem abandonar os dedilhados ao piano. É assim que, pelos 18 anos começa a participar de sociedades carnavalescas, como executante de violão e flauta, integrando, inclusive, o grupo de fundadores do célebre rancho Ameno Resedá, do qual foi o primeiro diretor de harmonia.

Nos anos 10, funcionário dos Correios, Sinhô torna-se conhecido como pianista de clubes de dança, principalmente na região da Cidade Nova. E, lá, freqüenta a comunidade baiana da "Pequena África", intercambiando experiências e influências com seus membros (em seu repertório incluem-se várias músicas sobre motivos negros, inclusive com títulos em língua africana estropiada) e muitas vezes polemizando com eles. E, na década seguinte, com seu nome já consolidado, passa a direcionar mais profissionalmente sua carreira, datando do final dos anos 20 alguns de seus maiores sucessos, como “Ora Vejam Só” e “Gosto que me Enrosco”, marcos do samba ainda amaxixado, mas já não tão marcadamente rural-baiano, bem ao estilo dos primeiros tempos da Praça Onze.

Mas o âmbito dançante do samba de Sinhô se restringia aos salões. E o samba do povo negro queria mais: queria não só o espaço aberto dos terreiros como a amplidão das ruas. Ruas que conquistou a algumas quadras da Cidade Nova. A partir do Estácio.

Principal responsável pela aceitação dos sambistas dos morros no ambiente radiofônico, Ismael Silva nasceu em Jurujuba, Niterói, em 1905. Mas aos 3 anos de idade já estava do outro lado da baía, na rua São Diniz, na subida do Morro de Santos Rodrigues (São Carlos), de onde saiu apenas para morar nas cercanias - Rio Comprido, Catumbi e Santa Tereza. 

Por volta de 1925, os morros vizinhos ou próximos ao Largo do Estácio - São Carlos, Favela, Mangueira e Salgueiro - eram fortes redutos de comunidades negras e, conseqüentemente, de samba. E o inter-relacionamento entre essas comunidades era habitual e freqüente, dados os laços de parentesco e a origem comum de muitos dos negros livres ou recém-libertos migrados para a antiga Capital Federal na virada para o século vinte. Assim, o jovem Ismael e sua roda de camaradas do Largo do Estácio (Bide, Baiaco, Brancura, Nilton Bastos, Francelino, Tibério etc.) freqüentavam os morros vizinhos e até mesmo os redutos negros mais distantes, como Irajá e Osvaldo Cruz. E, certamente motivados pelo que viam nessas visitas, num sadio propósito de emulação, resolveram fazer um samba para sair às ruas e descer à cidade.

O samba amaxixado ao estilo de Sinhô, por sua divisão rítmica, não se prestava para ser cantado com o grupo em marcha, em cortejo. E é aí que as recém-nascidas embaixadas do samba (das quais a "Deixa Falar", de Ismael e sua turma, teria sido o primeiro exemplar organizado, apesar de autodenominada "rancho carnavalesco") vão moldando as novas criações musicais dentro desse espírito, com menos células rítmicas e linhas melódicas de maior extensão.

Esse samba vai descer o morro com Ismael. E vai despertar o interesse da recém-nascida indústria musical, que começa a ver nele um negócio promissor. Aí, até mesmo jovens brancos e de carreira universitária começam a se utilizar desse poderoso meio de expressão. Jovens como o genial Noel Rosa.

Inaugurador de um segmento que representa o elo mais forte entre a música dos morros e a "da cidade", Noel Rosa nasceu num típico ambiente burguês carioca, no ano de 1910, vinte anos depois de Sinhô.

Alfabetizado em casa, pela mãe professora, cursou o prestigioso Colégio São Bento, ao mesmo tempo em que, também em casa, aprendia com o pai a tocar violão. Daí que, no final dos anos 20, quando já fazia os preparatórios para a Faculdade de Medicina, participou, na sua Vila Isabel, juntamente com estudantes do tradicional Colégio Batista e outros vizinhos, da criação do conjunto musical Flor do Tempo.

Em 1929, o conjunto, de animador de festinhas familiares que era, torna-se semi-profissional e muda o nome para Bando dos Tangarás. E é a partir daí que Noel vai travar contato estreito com o samba dos morros, através de compositores como Canuto e Antenor Gargalhada, do Salgueiro; Cartola, da Mangueira, Manoel Ferreira, da Serrinha, e outros - todos logo transformados em parceiros. 

Com o sucesso de Com que Roupa?, em 1930, Noel alça vôo para uma vertiginosa e diversificada carreira de criador musical. Mas sempre reverente ao samba mais tradicional, reverência expressa no estilo, em boa parte das letras e, principalmente, na ligação com bambas do porte de Ismael Silva e Heitor dos Prazeres. E preparando o terreno para o surgimento de um samba ainda mais encorpado e elegante, que viria logo depois, com Ary Barroso.

Caudatário da vertente sambística inaugurada por Noel Rosa - aquela que serve de elo fundamental entre o morro e a cidade - Ary Barroso é talvez o primeiro representante das classes abastadas a brilhar entre os grandes criadores do samba brasileiro. Filho de promotor público e deputado estadual, sobrinho-neto de professora de piano, Ary Barroso nasce em Ubá, Minas Gerais, no ano de 1903, cursa o tradicional Colégio de Cataguases e vem para o Rio de Janeiro, com 17 anos, para cursar a Faculdade de Direito do Catete.

Em 1922, reprovado na faculdade e sem dinheiro, interrompe o curso, que retomará quatro anos depois, para tornar-se pianista de salas de espera de cinemas e teatros e, mais tarde, de orquestras de dança. Sete anos depois, pelas mãos de Luiz Peixoto e Olegário Mariano, começava a escrever para o teatro musicado, numa trajetória que durou de 1929 a 1960. Nesse período, musicou mais de 60 revistas e compôs canções para vários filmes.

Das cerca de 260 composições que Ary deixou gravadas, muito mais da metade é constituída de sambas. E entre esses se encontram algumas obras básicas da música popular brasileira, comoAquarela do Brasil, Brasil Moreno, É Luxo Só, Bahia, Na Baixa do Sapateiro etc., todos sambas bem batucados, de melodia grandiloqüente, apoteóticos por natureza. Sambas que estimulariam o surgimento de outros grandes criadores, como Alcyr Pires Vermelho e Vicente Paiva, numa torrente caudalosa que acabaria por desaguar nas escolas, fazendo surgir o modelo típico da época de ouro dos grandes sambas-enredo.

Mineiro como Ary Barroso, mas com origem social diametralmente oposta, Ataulfo Alves é o quarto dos grandes pilares sobre os quais o samba carioca se consolidou. Nascido em 1909, na pequena Mirai, onde foi leiteiro, boiadeiro, carregador de malas, engraxate e lavrador, aprendeu naturalmente, por observar o pai violeiro, a dedilhar instrumentos de corda.

Com 18 anos veio para a antiga Capital da República, acompanhando a família de um médico, de quem foi serviçal. Trabalhando depois como ajudante de farmácia, foi morar no Rio Comprido, bairro da zona norte carioca, próximo ao Estácio e ao Salgueiro, onde, por volta de 1929, já dominando o violão e o cavaquinho, era diretor de harmonia de um bloco carnavalesco.

O ingresso de Ataulfo no meio profissional se dá pelas mãos de Alcebíades Barcelos, o Bide, que, em 1934, propicia o primeiro registro fonográfico de uma composição sua. Mas daí até a gravação de Leva Meu Samba, na sua própria voz, e o sucesso de Ai, Que Saudades da Amélia no carnaval de 1942, foram tempos difíceis.

Firmando-se como intérprete, criou o seu famoso grupo de "pastoras" (coristas dançarinas que, hoje, a internacionalização chamaria pedante e tolamente de backing-vocals), ao qual às vezes somava, nas apresentações pré-carnavalescas, um pequeno conjunto de ritmistas passistas.

Definindo-se, assim, como um sambista, Ataulfo - que era, inclusive, membro honorário da ala de compositores da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro - foi senhor de um estilo de criação único. Estilo que começa na "roça" como colono de fazenda; vem para o Rio, beber na fonte do morro; se torna auto-suficiente, com letras simples mas de rico conteúdo filosófico, e melodias inspiradas; e cria um caminho só seu dentro do amplo espaço do samba. Como um Martinho da Vila antecipado.