terça-feira, 28 de outubro de 2008

Duas vozes para a obra de Gudin


Retirado do 


Leila Pinheiro se apresenta com o compositor a partir de hoje na Liberdade e Dona Inah lança CD com show na Pompéia


Lauro Lisboa Garcia


Na opinião de um de seus principais parceiros, o letrista, poeta e também compositor Paulo César Pinheiro, Eduardo Gudin é "um dos maiores representantes do samba de sua terra nativa, a boêmia São Paulo". Duas cantoras, a paulista Dona Inah e a paraense Leila Pinheiro (radicada no Rio), concordam com ele e se debruçaram sobre a rica obra de Gudin, evidenciando, no caso de Leila, que seu cancioneiro evolui para além do samba. Ela divide o palco com o compositor em três noites de hoje a domingo no Teatro Fecap. Na quinta-feira que vem, Dona Inah faz uma grande festa de lançamento do CD Olha Quem Chega na choperia do Sesc Pompéia.

link Ouça trecho de Olha Quem Chega som 

Os shows de Leila e Gudin seriam também para lançar o CD, gravado no mesmo Teatro Fecap, que não ficou pronto a tempo. Então, a cantora decidiu colocá-lo na rua só em março ou abril de 2009. "Não queria fazer nada apressado", diz. De qualquer maneira, este show é o mesmo do CD, que é o primeiro a sair pelo selo da cantora, tem algumas das obras-primas mais famosas de Gudin e parceiros - como Mordaça, Chorei, Paulista, Velho Ateu e Maior É Deus -, outras menos conhecidas, como Pra Iluminar, e a inédita O Amor Veio me Visitar (parceria com Roberto Riberti).

Leila tem conexões fortes com a música de Gudin desde 1985. Foi a partir da classificação de Verde (dele e Costa Netto) defendida por ela no Festival dos Festivais, da TV Globo, que a cantora se projetou nacionalmente. Ela, que até então tinha lançado um disco independente, lembra que nos bastidores do festival conheceu Roberto Menescal, que a levou para a gravadora Polygram (hoje Universal). Lá estreou com Olho Nu, que incluía Verde e canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Donato, Cazuza. No álbum seguinte, Alma, de 1988, Gudin compareceu com Pra Iluminar, feita especialmente para ela, e Estrela do Norte.

"Fico imensamente feliz em poder pegar esse trabalho e jogar um pouco mais pro mundo, fora o que já levo cantando Verde aonde vou, porque sinto a obra do Gudin muito localizada em São Paulo. E ele é grandioso, é um compositor que não deixa a desejar a um Paulinho da Viola, a um Nelson Cavaquinho, que são mestres dele e se tornaram parceiros", observa a cantora. Gudin retribui à altura. "Leila é impressionante, sempre a achei uma das maiores cantoras do Brasil e é uma das pessoas que mais entendem meu trabalho. Temos uma afinidade muito grande desde Verde, mas também por causa da nossa relação com a bossa nova."

Gudin fez os arranjos e toca violão no show, além de cantar uma das 19 canções do roteiro. Leila se encarrega das demais, afinal, como diz o parceiro, é quem tem "o dom da voz". O compositor também evidencia no show seu dom de grande violonista. Entre seus acompanhantes estão feras como Fábio Torres (piano), Zeca Assumpção (baixo), Luiz Guello (percussão) e Edu Ribeiro (bateria).

Em relação ao segundo CD de Dona Inah, Gudin manteve uma certa distância. "Queria que ela fizesse do jeito dela. Só ouvi quando estava pronto e achei muito legal. Fiquei muito honrado", diz o compositor, que assina o arranjo de uma faixa, Ainda Mais (parceria com Paulinho da Viola). O repertório tem clássicos como E lá Se Vão Meus Anéis, Veneno, Velho Ateu, Verde, Maior É Deus e outros sambas menos conhecidos, como Santo Dia e Violão Gentil. 

Seis das 18 faixas do CD de Dona Inah coincidem com o de Leila e oito são parcerias de Gudin com Paulo César Pinheiro. Olha Quem Chega, que abre o CD e foi gravada por Elizeth Cardoso, foi a primeira da dupla. Nas demais, há sambas que compôs sozinho e outros em parceria com Paulo Vanzolini, Paulinho da Viola, Roberto Riberti, Nelson Cavaquinho, Mauro Duarte, Costa Netto e Dino Galvão Bueno. 

Além do grupo Samba Novo, que sempre acompanha Dona Inah, ela conta com participações do Quinteto em Branco e Preto, de Osvaldinho da Cuíca, Zé da Velha (trombone), Silvério Pontes (trompete), do cantor João Borba (em Violão Gentil) e do violonista Alessandro Penezzi, entre outros. A maioria deles participa do show no dia 30.

"Admiro muito Gudin, é um grande compositor, grande amigo. Confesso que até um tempo atrás não conhecia muito o repertório dele. Nos shows, cantava algumas músicas como Veneno e Mente sem saber que eram dele. Quando soube de quem era, comecei a me interessar mais e resolvi fazer esta singela homenagem", diz Dona Inah, de 73 anos. Ela diz que bancou a produção do disco do próprio bolso (a distribuição é da Dabliú) e contou com a colaboração dos músicos, que tocaram praticamente de graça. "Todos me ajudaram para conseguir fazer o que eu tinha vontade."

Em texto publicado no encarte do CD, Paulo César Pinheiro ressalta o bom gosto, o canto "puro, primitivo, sem pretensão de mostrar virtuosismos" da "cantadeira realmente popular", que "tem a voz das amas-de-leite do tempo do cativeiro, das lavadeiras de beira-rio, das crooners enfumaçadas dos cabarés antigos, das pastoras das primeiras escolas de samba".

Para Gudin, o canto de Dona Inah não tem nada de primitivo. "Ela é demais, afinadíssima, espontânea." Sua voz envolvente vem sendo lapidada em programas de rádio e nos bailes da vida desde os anos 50, quando ela iniciou a carreira ainda em Araras, no interior de São Paulo, onde nasceu. Em 1960 gravou seu primeiro 78RPM, e a partir dos anos 70 limitou-se às rodas de samba nas noites paulistanas. Até que em 2002 sua carreira ganhou novo ânimo ao participar do musical Rainha Quelé, em homenagem a Clementina de Jesus, ao lado de Marília Medalha e Fabiana Cozza.

Veio então a oportunidade de gravar o primeiro CD, Divino Samba Meu, em 2004, e tudo se transformou. Hoje ela vive feliz "no meio da molecada", seja em noitadas no bar Ó do Borogodó, em Pinheiros, toda terça-feira, ou na realização de shows e CDs. Thiago França, responsável pela produção, direção musical e arranjos de nove faixas de Olha Quem Chega, por exemplo, tem 27 anos. "Adoro todos eles, tem muita gente nova fazendo samba bom. Falamos a mesma língua, não tem diferença de idade." 


Serviço

Leila Pinheiro e Eduardo Gudin. Teatro Fecap (400 lug.). Avenida Liberdade, 532, 3188-4149. Hoje e amanhã, 21 h; domingo, 19 h. R$ 30 

D. Inah. Sesc Pompéia - Choperia (800 lug.). Rua Clélia, 93, 3871-7700. 5.ª (dia 30), 21 h. R$ 4 a R$ 16

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Sambeabá - O samba que não se aprende na escola


Retirado do
 



Publicado originalmente em 27/01/2003

Título: Sambeabá - O que não se aprende na escola
Autor: Nei Lopes
Ilustrador: Cássio Loredano
Editoras: Casa da Palavra e Folha Seca
Previsão de lançamento: 18 de fevereiro de 2003

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Sambista de primeira e, também, especialista de primeira em samba, Nei Lopes vai expor seus conhecimentos e suas vivências em "Sambeabá - O que não se aprende na escola", livro com intenções didáticas para leitores leigos, mas que poderá atrair também os antigos amantes do gênero. Co-produção da Casa da Palavra e da Folha Seca, o livro será lançado em fevereiro. Aqui você já pode ler uma parte do terceiro capítulo, chamado "O império do samba"


Do Berço à Maioridade

O samba urbano nasce na Praça Onze de Sinhô; ganha forma no Estácio de Ismael Silva; lapida-se em torno da Vila Isabel de Noel Rosa; e se consolida em duas vertentes principais: a de Ary Barroso e a de Ataulfo Alves.

Nascido em 1888, na rua do Riachuelo e criado na Senador Pompeu, no centro do Rio, José Barbosa da Silva, o Sinhô, era um típico representante daquela pequena burguesia carioca tão bem retratada por Lima Barreto. Mulato, filho de pintor-artístico, decorador de paredes de bares e clubes recreativos, aos 12 anos, estudante compulsório de flauta, começa a dedilhar o indefectível piano doméstico, presente em todas as casas pequeno-burguesas da época.

Já adolescente, volta-se também para o cavaquinho e, depois, para o violão, mas sem abandonar os dedilhados ao piano. É assim que, pelos 18 anos começa a participar de sociedades carnavalescas, como executante de violão e flauta, integrando, inclusive, o grupo de fundadores do célebre rancho Ameno Resedá, do qual foi o primeiro diretor de harmonia.

Nos anos 10, funcionário dos Correios, Sinhô torna-se conhecido como pianista de clubes de dança, principalmente na região da Cidade Nova. E, lá, freqüenta a comunidade baiana da "Pequena África", intercambiando experiências e influências com seus membros (em seu repertório incluem-se várias músicas sobre motivos negros, inclusive com títulos em língua africana estropiada) e muitas vezes polemizando com eles. E, na década seguinte, com seu nome já consolidado, passa a direcionar mais profissionalmente sua carreira, datando do final dos anos 20 alguns de seus maiores sucessos, como “Ora Vejam Só” e “Gosto que me Enrosco”, marcos do samba ainda amaxixado, mas já não tão marcadamente rural-baiano, bem ao estilo dos primeiros tempos da Praça Onze.

Mas o âmbito dançante do samba de Sinhô se restringia aos salões. E o samba do povo negro queria mais: queria não só o espaço aberto dos terreiros como a amplidão das ruas. Ruas que conquistou a algumas quadras da Cidade Nova. A partir do Estácio.

Principal responsável pela aceitação dos sambistas dos morros no ambiente radiofônico, Ismael Silva nasceu em Jurujuba, Niterói, em 1905. Mas aos 3 anos de idade já estava do outro lado da baía, na rua São Diniz, na subida do Morro de Santos Rodrigues (São Carlos), de onde saiu apenas para morar nas cercanias - Rio Comprido, Catumbi e Santa Tereza. 

Por volta de 1925, os morros vizinhos ou próximos ao Largo do Estácio - São Carlos, Favela, Mangueira e Salgueiro - eram fortes redutos de comunidades negras e, conseqüentemente, de samba. E o inter-relacionamento entre essas comunidades era habitual e freqüente, dados os laços de parentesco e a origem comum de muitos dos negros livres ou recém-libertos migrados para a antiga Capital Federal na virada para o século vinte. Assim, o jovem Ismael e sua roda de camaradas do Largo do Estácio (Bide, Baiaco, Brancura, Nilton Bastos, Francelino, Tibério etc.) freqüentavam os morros vizinhos e até mesmo os redutos negros mais distantes, como Irajá e Osvaldo Cruz. E, certamente motivados pelo que viam nessas visitas, num sadio propósito de emulação, resolveram fazer um samba para sair às ruas e descer à cidade.

O samba amaxixado ao estilo de Sinhô, por sua divisão rítmica, não se prestava para ser cantado com o grupo em marcha, em cortejo. E é aí que as recém-nascidas embaixadas do samba (das quais a "Deixa Falar", de Ismael e sua turma, teria sido o primeiro exemplar organizado, apesar de autodenominada "rancho carnavalesco") vão moldando as novas criações musicais dentro desse espírito, com menos células rítmicas e linhas melódicas de maior extensão.

Esse samba vai descer o morro com Ismael. E vai despertar o interesse da recém-nascida indústria musical, que começa a ver nele um negócio promissor. Aí, até mesmo jovens brancos e de carreira universitária começam a se utilizar desse poderoso meio de expressão. Jovens como o genial Noel Rosa.

Inaugurador de um segmento que representa o elo mais forte entre a música dos morros e a "da cidade", Noel Rosa nasceu num típico ambiente burguês carioca, no ano de 1910, vinte anos depois de Sinhô.

Alfabetizado em casa, pela mãe professora, cursou o prestigioso Colégio São Bento, ao mesmo tempo em que, também em casa, aprendia com o pai a tocar violão. Daí que, no final dos anos 20, quando já fazia os preparatórios para a Faculdade de Medicina, participou, na sua Vila Isabel, juntamente com estudantes do tradicional Colégio Batista e outros vizinhos, da criação do conjunto musical Flor do Tempo.

Em 1929, o conjunto, de animador de festinhas familiares que era, torna-se semi-profissional e muda o nome para Bando dos Tangarás. E é a partir daí que Noel vai travar contato estreito com o samba dos morros, através de compositores como Canuto e Antenor Gargalhada, do Salgueiro; Cartola, da Mangueira, Manoel Ferreira, da Serrinha, e outros - todos logo transformados em parceiros. 

Com o sucesso de Com que Roupa?, em 1930, Noel alça vôo para uma vertiginosa e diversificada carreira de criador musical. Mas sempre reverente ao samba mais tradicional, reverência expressa no estilo, em boa parte das letras e, principalmente, na ligação com bambas do porte de Ismael Silva e Heitor dos Prazeres. E preparando o terreno para o surgimento de um samba ainda mais encorpado e elegante, que viria logo depois, com Ary Barroso.

Caudatário da vertente sambística inaugurada por Noel Rosa - aquela que serve de elo fundamental entre o morro e a cidade - Ary Barroso é talvez o primeiro representante das classes abastadas a brilhar entre os grandes criadores do samba brasileiro. Filho de promotor público e deputado estadual, sobrinho-neto de professora de piano, Ary Barroso nasce em Ubá, Minas Gerais, no ano de 1903, cursa o tradicional Colégio de Cataguases e vem para o Rio de Janeiro, com 17 anos, para cursar a Faculdade de Direito do Catete.

Em 1922, reprovado na faculdade e sem dinheiro, interrompe o curso, que retomará quatro anos depois, para tornar-se pianista de salas de espera de cinemas e teatros e, mais tarde, de orquestras de dança. Sete anos depois, pelas mãos de Luiz Peixoto e Olegário Mariano, começava a escrever para o teatro musicado, numa trajetória que durou de 1929 a 1960. Nesse período, musicou mais de 60 revistas e compôs canções para vários filmes.

Das cerca de 260 composições que Ary deixou gravadas, muito mais da metade é constituída de sambas. E entre esses se encontram algumas obras básicas da música popular brasileira, comoAquarela do Brasil, Brasil Moreno, É Luxo Só, Bahia, Na Baixa do Sapateiro etc., todos sambas bem batucados, de melodia grandiloqüente, apoteóticos por natureza. Sambas que estimulariam o surgimento de outros grandes criadores, como Alcyr Pires Vermelho e Vicente Paiva, numa torrente caudalosa que acabaria por desaguar nas escolas, fazendo surgir o modelo típico da época de ouro dos grandes sambas-enredo.

Mineiro como Ary Barroso, mas com origem social diametralmente oposta, Ataulfo Alves é o quarto dos grandes pilares sobre os quais o samba carioca se consolidou. Nascido em 1909, na pequena Mirai, onde foi leiteiro, boiadeiro, carregador de malas, engraxate e lavrador, aprendeu naturalmente, por observar o pai violeiro, a dedilhar instrumentos de corda.

Com 18 anos veio para a antiga Capital da República, acompanhando a família de um médico, de quem foi serviçal. Trabalhando depois como ajudante de farmácia, foi morar no Rio Comprido, bairro da zona norte carioca, próximo ao Estácio e ao Salgueiro, onde, por volta de 1929, já dominando o violão e o cavaquinho, era diretor de harmonia de um bloco carnavalesco.

O ingresso de Ataulfo no meio profissional se dá pelas mãos de Alcebíades Barcelos, o Bide, que, em 1934, propicia o primeiro registro fonográfico de uma composição sua. Mas daí até a gravação de Leva Meu Samba, na sua própria voz, e o sucesso de Ai, Que Saudades da Amélia no carnaval de 1942, foram tempos difíceis.

Firmando-se como intérprete, criou o seu famoso grupo de "pastoras" (coristas dançarinas que, hoje, a internacionalização chamaria pedante e tolamente de backing-vocals), ao qual às vezes somava, nas apresentações pré-carnavalescas, um pequeno conjunto de ritmistas passistas.

Definindo-se, assim, como um sambista, Ataulfo - que era, inclusive, membro honorário da ala de compositores da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro - foi senhor de um estilo de criação único. Estilo que começa na "roça" como colono de fazenda; vem para o Rio, beber na fonte do morro; se torna auto-suficiente, com letras simples mas de rico conteúdo filosófico, e melodias inspiradas; e cria um caminho só seu dentro do amplo espaço do samba. Como um Martinho da Vila antecipado.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A Música e o Samba em São Paulo



Não existisse o homem o pecado seria ficção ao reino animal “irracional"?

Muito certamente a cultura natural continuaria a se manifestar, a se propagar e a se aperfeiçoar, ainda que de forma lenta e rudimentar, porém sempre seguindo a concepção instintiva e sensorial da humanidade.

A verdade é que o homem aqui está, abençoado pela capacidade criativa de produzir e reproduzir vidas, através os mecanismos identificados, instituindo e aperfeiçoando métodos “para a criação de vidas através a música”. O Samba na Cidade de São Paulo, estabeleceu um marco de liberdade da manifestação popular espontânea pela providencia divina, e também por um processo que; embora primitivo, tem se mostrado indiscutivelmente o mais eficiente e equânimo: O amor; amor entre pessoas, o amor a arte, o amor e respeito a individualidade. O amor que nos leva de encontro a reciprocidade.

Conta história quem tem história pra contar. Alias; todos temos histórias, alguns “não sabem” contá-las, e mesmo assim as contam, outros não podem contá-las mesmo que o saibam, ainda outros que preferem não contá-las, e que por vezes acabam contando-as por acaso, e mais alguns outros que as inventam... Histórias nunca expressam com exatidão a verdade, mesmo quando possuem este objetivo; elas podem também expressar; inventivas, mentira, ou ficção. Podem ser aumentadas ou resumidas. São apenas um indicativo de possibilidades previstas, criadas, ou ocorridas, e que tentam retratar com proximidade tudo aquilo que passa na cabeça do seu narrador. São situações que podem ser imaginadas, ouvidas e recontadas, pesquisadas e vividas, sobre determinadas ocorrências, situações e circunstâncias.

Diz-se: “de louco todos temos um pouco” , mas é também inevitável que não tenhamos um pouco de musicalidade e samba no pé. Estas poucas linhas, talvez expliquem um pouco da bastante razão que nos imbui disseminar e louvar o samba na amplitude de toda sua significação e interpretatividade.

Cantando, escrevendo letras, melodiando frases soltas ou conjugadas, equacionando e misturando o som de instrumentos ou objetos de percussão, senão; integrando-se com o empurrar de um carro alegórico, costurando fantasias, dançando, tocando, divulgando, ou com outras quaisquer alternativas estas as formas de manifestação que tem evidenciado o samba, como uma das mais belas obras da cultura nacional, que aflora um imenso contingente sem fronteiras, sem raça, sem cor, sem credo e de nacionalidade múltipla, e que tem por característica principal a simpatia e o bom humor. Acima de tudo o respeito e ética, que são peculiares da gente sofrida, e que vê nesta manifestação musical; um alívio para as atribulações do dia-a-dia, a restauração da ilusão, e para a manutenção da esperança nos dias seguintes.



SÃO PAULO

Atravessar uma grande névoa de fumaça, com os pulmões ardentes e semi dilacerados pelos resquícios de pólvora, era a alternativa para se tentar salvar um pouco do que restava até então.

Apenas o suor, e porquê não lágrimas; -era difícil distinguir-, o lenitivo que por entre os lábios também ressecados, suavizavam, ou apenas amenizavam, o "nó na garganta", ocasionado também pela "poeira" incessante que perdurava no período -idos de 1950- pós-guerra mundial.

Éramos felizes e não sabíamos; muitos diriam. Seria aquela “fumaça e nuvem de poeira”, o prenúncio de que logo mais, um pouco adiante -idos pós 1964-, viveríamos uma longa e intensa expectativa, a espera por dias melhores? Ainda, e até quando...? Já não estamos falando sobre àquela guerra barulhenta, sanguinária, mortífera, arrasadora e "de fato verdadeira" que mal havia findo. Agora estamos nos referindo a uma outra guerra; também literal, mas que muito ao contrário desta que nos referíamos a pouco, éra capiciosa e sutil, e deslizava sobre “nossas” mentes, como naqueles instantes, nenhuma caneta poderia “jamais deslizar” sobre o papel. Uma guerra que além de silenciosa, era fria, cega, mortal e avassaladora, tão ou mais, que os poderosos mísseis da modernidade: a repressão; audaciosa, e que privilegiava a força, em detrimento a inteligência.

Sob a densidade continua desta “neblina interminável” que se descerrava; como compor letras e melodias? Como tocar? Como cantar? A "lei do silêncio", proibia até mesmo que as canetas “cochichassem” aos papéis? Eram dias turbulentos, apesar da enganosa aparente calmaria.

Ironicamente, por força do destino, ou como obra do acaso, ou ainda pela sutileza da providencia Divina, ‘a menos de um palmo do nariz’ do DOPS Departamento de Ordem Política e Social - comando do “ex” Quartel General, e que tinha por incumbência os procedimentos agudos ditados n’aquela época - hoje; Museu do Imaginário do Povo Brasileiro localizado na Praça Mauá, no bairro da Luz-, escancarava-se o (carnaval) samba; este sim a encarar de peito aberto; tal qual se escondem as estrelas a luz do luar, lá estava; destemido, acercando-se por todos os lados, e tendo a representá-lo o povo de São Paulo.

Àqueles anônimos atribui-se a grande parcela de responsabilidade pela restauração, criação e preservação da "vida", pelos ingredientes da sabedoria e do conhecimento; o samba; a música que n’aqueles instantes; transformara-se como um dos mais saudáveis métodos de manutenção e preservação da espécie humana. Alguns destruindo, e outros tentando reconstruir vidas de maneira prática, suave e melódica.

O SAMBA - Não sabemos explicar ao certo quando e onde nasceu, mas é certo que ali ele sempre morou; centro da Cidade de São Paulo, Largo General Ozório, Avenida São João; fazendo divisa com os bairros: Barra Funda, Campos Elíseos, Luz, Santa Cecília, Santa Ifigênia e Vila Buarque.

Ali; na Avenida São João, local em que hoje segue pelos altos o “minhocão”, entroncamento entre; a Rua Martim Francisco, Alameda Gléte, e Rua General Julio Marcondes Salgado onde resistia existir um único Clube de Boliche (outro também existira na Rua Nestor Pestana; local sede da antiga TV Paulista – Canal 5.) em São Paulo, estabelecia-se a concentração da maior Festa Popular Brasileira; o desfile das Escolas de Samba do Carnaval Paulistano, sempre representado pela exponencial figura do Rei Momo. O Carnaval estendia-se por toda a avenida, até a dispersão, que localizáva-se na Praça do Correio junto ao Vale do Anhangabaú. Reunidos, e também por toda a avenida espalhados; Autores, Arranjadores, Cantores, Compositores, Intérpretes Músicos, Passistas, e apreciadores, que despiam sua inspiração, discorrendo sobre os mais diversos temas aflorados.

Um passeio pelas cercanias expunham: O Palácio do Governo na Avenida Rio Branco, a Rua Santa Ifigênia “e Adjacentes -onde ainda se concentra o maior comércio de eletro-eletrônicos, informática, telefonia e instrumentos musicais-, o Largo do Arouche; -que hospeda a Academia Paulista de Letras-, a Rua Maria Antonia e a Rua Doutor Vila Nova; -seio da intelectualidade-, a Praça da República; -grande palco das manifestações político- estudantis-, a Rua do Triunfo; -nascedouro das grandes produções do cinema nacional-, a Avenida Ipiranga; -bulevard dos tradicionais hotéis da cidade na época e onde hospedava-se o Avenida Danças (“celeiro dos bambas da dança da música de salão e gafieira”), o bairro de Santa Cecília (onde estabelecia-se na Rua Sebastião Pereira a antiga Rádio Nacional); -passarela e reduto dos mais tradicionais blocos carnavalescos-, ainda nas cercanias espalhados, os mais tradicionais redutos do samba, casas noturnas, bailes e gafieiras. Na Barra Funda; o São Paulo Chic transformara-se na grande sensação da cidade e pioneiro a especializar-se no incentivo de priorizar o samba de raiz. Ao povo o que lhe pertencia; alegria, vida, satisfação, já que não lhe era concedia a liberdade plena. Muitas foram as restrições e imposições do regime autoritário que cerceavam não só a liberdade de expressão “e pensamento”, mas também a forma de manifestação da sociedade. O São Paulo Chic foi uma iniciativa do Grêmio Recreativo Escola de Samba Camisa Verde e Branco, que mascarava este evento como ensaio carnavalesco, e assim, contribuiu para solidificar a abertura de novos antros dançantes do samba pela cidade, e a continuidade dos já existentes: Catedral do Samba, O Jogral e Teléco-Téco; no Bairro da Bela Vista – Tradicional Bexiga, o Garitão; na Barra Funda, o Paulistano da Glória; no Bairro da Liberdade, o Arakan Clube ; no Bairro do Aeroporto, A Villa Samba , O Barracão de Zinco, e o Moema Samba; no Bairro de Moema, Som de Cristal; na Vila Buarque, O Clube Transatlântico; na Avenida Ipiranga – centro de São Paulo, o Oba-Oba de Sargentelli e Mulatas; na Avenida Paulista, O Beco de Abelardo Figueiredo; na Rua Bela Cintra, O Cartola Club na Brigadeiro Luiz Antonio, o Som de Cristal na Rua Rego Freitas, sem contudo deixar de referenciar que estas iniciativas eram consagradas por diversos movimentos e pelas escolas de samba de variadas regiões de São Paulo, dentre as quais; Aguia de Ouro, Acadêmicos do Brás,’ Acadêmicos do Tatuapé, Acadêmicos do Tucuruví, Barroca da Zona Sul, Colorado do Brás, Flor da Vila Dalila, Gaviões da Fiel , Imperador do Ipiranga, Império do Cambucí., Independente de Vila Prudente, Lavapés, Leandro de Itaquera, Mancha Verde, Mocidade Alegre, Morro da Casa Verde , Nenê de Vila Matilde, Paulistano da Glória, Pérola Negra, Primeira da Aclimação, Prova de Fogo, Sociedade Rosas de Ouro, Tom Maior, Unidos do Peruche Unidos de Vila Maria, Unidos de São Lucas, Vai Vai, X-9 Paulistana, que se destacaram e outras que até hoje permanecem em evidência e exercem grande influência no movimento samba de São Paulo, incluindo as variantes Choro e Bossa Nova. (Obs.: Não nos importamos com a data de fundação de cada uma destas Escolas de Samba, mesmo por que independentemente deste fato, muitas são dissidências e todas merecem respeito ao que hoje representam para o Carnaval Paulista atual - algumas não existiam na época-. Oficinas de consertos, restauração e de fabricação de instrumentos musicais- das quais até hoje algumas se localizam, no mesmo endereço; Rua 24 de maio, Largo do Paissandú, Rua Antonio de Godoy, Rua do Seminário, Avenida Ipiranga, até a Avenida Duque de Caxias, Rua dos Protestantes, Rua do Triunfo, Rua dos Andradas, Rua Santa Ifigênia, Rua General Osório, Avenida Rio Branco, Avenida São João, Rua Timbiras, Rua Aurora, Rua Vitória, e Rua dos Gusmões, dentre outras,- sempre incentivaram a execução da música, disponibilizando espaços de sua calçada e em seu interior, aos mestres desta nobre arte.

Não obstante as dificuldades naturais, e também àquelas essencialmente peculiares de um período pós-guerra mundial, onde sobressaia um momento de forte recessão, com prioridade para o restabelecimento “a vida”, à ordem e retomada ao progresso da Nação, era preciso ainda assim acreditar que dias melhores estavam próximos, embuir-se de amor, otimismo e entusiasmo, para amenizar situações e harmonizar coletivamente o espírito de cidadania. E ainda que pairasse este espírito fraternal, reinava também a inquietação, provocada pelos diversos movimentos reivindicatórios da sociedade.

É curioso notar que esta região pelas características de seu comércio e pela aglomeração das Produtoras Cinematográficas que concentrava músicos e artistas (aparentemente neutros), situava-se entre dois pólos oponentes; avizinhando-os: A Vila Buarque; -que serviu como palco para as concentrações intelectuais- sede de intensos conflitos entre a polícia e estudantes- ; e a Rua Mauá e Largo General Ozório, no Bairro da Luz; local sede da Polícia Política e cárcere de intelectuais; artistas, atores, cantores, estudantes, músicos e outros manifestantes e simpatizantes dos movimentos contrários a repressão. Entre uns e outros; o Samba e seus adeptos.

O Largo do Paissandu e proximidades abrigavam sem distinção, artistas de todos os gêneros, de dia ou a noite, na praça, em pé, nos bancos ou nas esquinas, nos botecos e restaurantes, principiantes e famosos, mesmo que tão somente de passagem e por necessidade; neste circuito localizava-se a SICAM, Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais, A Ordem dos Músicos do Brasil, no prédio 51 do Largo, e a Associação Brasileira dos Empresários de Diversão na Rua Dom José de Barros.

Apesar de acentuar determinados fatos que fazem referência a São Paulo e, ao Samba de forma não específica, não podemos nos furtar aos fatos e valores todos, existentes, que solidificaram e solidificam a cada dia a música brasileira, qualquer seja a origem d’aqueles que a fazem, e o local onde estejam; mesmo que ausentes, e de onde a pratiquem.

Independentemente dos valores convencionais que por vezes, indiscriminadamente se atribuem com mais freqüência ao indivíduo de formação acadêmica, e que em alguns casos; até por força da vaidade pessoal, da condição econômica e pela exigência pessoal destes mesmos, os que sobressaiam, naqueles momentos de censura estavam quase que tão somente respaldados pela essência do âmago; fluência natural e espiritual de criatividade, que se materializou de diversas formas, e em temas inéditos, inspirando uma das mais importantes obras culturais da América Latina; a Música Popular Brasileira, através figuras exponenciais sabidas e outras ainda anonimas.

Apesar do progresso e do esforço dispendido por todos os segmentos da sociedade, na época; as dificuldades eram muitas e relutavam por cessar. Com as transformações políticas sofridas pelo país, após o evento da revolução de 1964 e com a conseqüente tomada do poder pelo regime militarista, tudo passou a ser incógnita. A saúde da cultura no país entrou em coma profundo; por seqüelas múltiplas em todos os segmentos. O conhecimento a criatividade, a sabedoria e a instrução, estavam a beira da falência e...? Será? A capacidade do homem limitaria-se a força, a descrença, ao descaso, a desumanidade e a ignorância, ou seria apenas mais uma provação para que se desenvolvesse ainda mais o poder sensitivo de toda a nação? Este foi sem dúvidas um grande momento de resignação e lutas: De um lado o retrocesso cultural administrado pela força, e do outro; a essência da peculiaridade, contingenciada pela perspicácia dos "Davis".

Passar ileso e anônimo, por um período tão turbulento e tão drástico na história da arte e da música brasileira contemporânea era um grande desafio.

Assim como a maioria das empresas de pequeno, e também de médio porte quando em fase de crescimento, vários dos estabelecimentos que até hoje no mesmo local se estabelecem, não escaparam as agruras das enormes instabilidades provocadas pelas duras e constantes alternâncias dos planos econômicos governamentais. Foram altos e baixos, sendo que em determinadas circunstâncias, só mesmo Deus poderia encorajá-los ao dia seguinte. Sob as flores os espinhos, mas os momentos ruins apenas contribuíram para solidificar a existência d’`aqueles que lá permaneceram e permanecem, desenvolvem mercados no exterior, e exportam seus produtos para diversos países do mundo, o que de forma substancial tem contribuído para elevar o samba de São Paulo , para além fronteiras do Estado e do País.

Da mais intrínseca seqüência de acordes de uma obra musical, ao reboar espocante e seqüencial das baquetas sobre os instrumentos de percussão, toda e qualquer ação de desenvolvimento e consolidação em prol da cultura brasileira, merece o apoio de todos.

Porquanto exista o relacionamento cordial e sincero que o samba desperta, todos os ausentes ressuscitarão, serão lembrados e representados por cada sopro, acorde ou baquetada dos companheiros presentes. Uma postura natural desobrigada do cumprimento de um código de ética pré estabelecido.

O samba é um dos mais importantes representantes do Brasil no exterior. “Samba na cabeça e Deus no coração”. Isto é o samba; o amor pela origem humilde, e como digno representante da beleza e do aconchego de nossa Cidade, por esta obra faz expressar sua reciprocidade a São Paulo, pela acolhida fortuita a todos os Paulistanos; legítimos e naturais.

Mais alto que o mais alto pedestal de um carro 'alegórico'
mais efervescente que o sangue nas veias de um passista a desfilar, mais imponente que um carro "abre-alas",
mais belo e sutil que as evoluções extraordinárias de um casal "mestre-sala e porta-bandeira",
mais representativo que a "comissão de frente",
mais encantador que a "ala de baianas";
assim é o samba.

EVOCAÇÃO AO SAMBA:

Ao entoar o cavaco; arrepios...,
uma pequena contração muscular,
a respiração ofegante,
coração bate forte;
fazendo o sangue girar mais rápido nas veias.
O merejar de suor por entre os poros.
Um filme na mente...;
o pai, a mãe, os filhos...; a família, os amigos e o semelhante.
Toda uma vida de amor, esperança, e muita luta; entre recordações!
Valha-nos Deus, Nossa Senhora,
tem que ser agora; fé, amor e esperança.

Repinique..., surdo..., caixa...
tamborim..., reco-reco..., cuíca...,
ganzá..., agogô..., pandeiro...,
cavaco... e “frigideira”;

O samba,
não é mentira nem verdade,
O samba,
semente da felicidade

O samba,
faz história da “história”,
faz a glória da “gloria”,
faz a vida viver.

O samba,
utopia verdade,
poliglota de leito,
saber sem conhecer.

O samba faz
história da “história”,
faz a gloria da “glória”
faz a vida viver.

O samba,
utopia verdade,
poliglota de leito,
saber sem conhecer.

-Poliglota de leito-
Homenagem ao Samba



O samba na Cidade de São Paulo é "grupo especial" sempre, e está sempre em primeiro lugar.
Samba é tradição com jeito de simplicidade. Um projeto de vida delineado pela natureza com formato de música, que contagia o mundo com jeito de brasilidade. Epicentro musical com sabor e cheiro tropical, que se espalha por todo um universo de prazeres.
A cidade de São Paulo é um nascedouro de ousadia e criatividade, centro de inspiração de muitas composições musicais. Baluarte dos "Bambas". Uma autêntica fábrica de samba no mais amplo sentido literal.
É assim como se faz o Samba em São Paulo! É assim como se faz o Samba no mundo!

O Samba; representa uma comunidade harmônica, congraçada com ideais e o espírito de proporcionar o melhor. Estrutura continuada, que se alicerça com amor, honestidade e honradez.
O samba nos proporciona renovação espiritual. Uma troca de energia sempre positiva, que com toda certeza nos reconduz ao caminho da esperança.
Mais que um depoimento isolado do maior expoente da maior significância artística, mais que o depoimento do mais humilde principiante ou de um leigo observador, e mais que todos os depoimentos testemunhais possíveis, encontramos refletido a cada olhar, e a cada sorriso, o real significado da palavra “samba”.


O samba re-ilumina a mente, desperta a capacidade criativa, recondiciona músculos e nervos, energiza a corrente sanguínea e desperta o bom humor.
Daniel Paiva - (2002) - 21/11/2005