segunda-feira, 1 de setembro de 2008

DA FESTA DA COLHEITA AO CARNAVAL AÉREO



Retirado do



Pobre vira rei, rainha, princesa. Magia, cor e movimento. São quatro dias sem regras que controlem a explosão de sensualidade e alegria, que culmina com o carnaval tipo exportação do sambódromo, cada vez mais aéreo e menos samba-no-pé.





A origem da festa se perde no tempo. Dez mil anos antes de Cristo, povos já se reuniam com rostos mascarados e corpos pintados para espantar os demônios da má colheita. Egípcios festejavam a deusa Ísis, a lua, o boi sagrado Ápis. Gregos dançavam e cantavam celebrando a volta da primavera como o renascer da natureza.
Portugueses trouxeram a farra para o Brasil, com o entrudo, às vezes violento, com muita correria e batalhas de farinha, água, fuligem e cal pelas ruas. Festa e diversão, aqui e na Europa, em Paris, Nice, Veneza, Roma, Nápoles, Florença, Munique. Mas nada que se compare ao carnaval brasileiro.

O Brasil colonial registra os primeiros indícios, quando negros desembarcados na antiga capital e os emigrados da Bahia se reuniam perto do porto carioca para cantar e dançar nas horas de folga, ao som de instrumentos rústicos. Eram as primitivas rodas de samba, onde as baianas se destacavam. De dia, vendiam quitutes em tabuleiros; à noite, mostravam sua cadência. As rodas foram crescendo; e os batuqueiros, gente humilde, subindo os morros. Desciam para dançar na cidade, formando grupos que receberam os nomes de cordões, blocos e ranchos.

Da Festa de Nossa Senhora do Rosário, padroeira das confrarias negras, nasceram grupos que também dariam origem a cordões, como o dos Velhos e o dos Cucumbis. Participavam sambistas tradicionais como Donga e João da Baiana, importantes na formação das escolas de samba.
Cordões tinham nomes curiosos, como Destemidos do Livramento ou Vitoriosos das Chamas. Blocos se formavam entre amigos que trabalhavam juntos ou moravam no mesmo bairro. E rancho era uma espécie de cordão organizado, com presença feminina e instrumentos mais ricos, como violão, cavaquinho, flauta e clarinete. Tinham músicas próprias, marcha e samba, porta-estandarte e coreografia.





Contrastando com o samba dos pobres, em 1855 surgem as sociedades, formadas por brancos de classe média e aristocratas, que se reuniam para discutir negócios, jogar cartas, beber e preparar o carnaval. Nos desfiles, lançavam desafios umas às outras em versos de poetas conhecidos, como Olavo Bilac e Emílio de Meneses. Faziam sátiras ao governo, defendiam movimentos sociais como a libertação dos escravos e contavam com nomes famosos, a exemplo do abolicionista José do Patrocínio, que pertencia à Tenentes do Diabo. Em 1864, a sociedade não desfilou porque doou o dinheiro arrecadado entre os sócios para a alforria de doze escravos.

A riqueza do carnaval brasileiro deve muito às sociedades. Faziam festa colorida, com mulheres arrumadas, fantasias luxuosas, carros alegóricos e fogos de artifício. O povo se espremia nas calçadas para aplaudir e comerciantes alugavam suas janelas para quem quisesse ver melhor. Nos bailes, eram obrigatórias as máscaras e as batalhas de confetes. Foram as sociedades que criaram os concursos de fantasias e instalaram o luxo no carnaval.



A PRIMEIRA ESCOLA DE SAMBA NASCEU NO ESTÁCIO DE SÁ






É verdade. As escolas nasceram ali em agosto de 1928, quando Ismael Silva fundou a Deixa Falar para fugir da indisciplina dos blocos e da rigidez dos ranchos. O nome foi uma resposta aos bairros que escondiam rivalidades e se uniam contra o Estácio, que se achava o melhor no samba. Ismael tinha como parceiros Nilton Bastos, Alcebíades Barcelos e Heitor dos Prazeres. Juntos, introduziram no samba a nova batida e o ziriguidum. Foram os primeiros compositores a despertar o interesse de cantores profissionais. Deixa Falar promoveu a maior mudança do carnaval: deu origem ao samba-enredo e às escolas atuais. Todos os anos seus integrantes desciam o morro para desfilar na Praça Onze e incitavam o povo a participar.

Depois da Deixa Falar, sambistas de vários morros formaram outras escolas e passaram a ir para a Praça Onze. Entre elas, a Cada Ano Sai Melhor, de São Carlos; Estação Primeira, de Mangueira, fundada por Cartola para unir todos os grupos de batuque do morro; Azul e Branco, do Salgueiro; Fiquei Firme, da Favela; e Vai Como Pode, de Osvaldo Cruz, atual Portela.

A exibição dos grupos gerou disputa e em 1932 o jornal Mundo Esportivo promoveu concurso para escolher a melhor escola. Saiu campeã a Mangueira, com o samba-enredo A Pátria Querida, de Carlos Cachaça. Três anos depois foi oficializado o concurso das escolas de samba do Rio de Janeiro, que teve a Portela como primeira vencedora.


POR QUÊ ESCOLA DE SAMBA?

Há quem diga que o nome veio de um grupo da pesada, que se inspirou na Escola Normal Estácio de Sá. O compositor Ismael Silva, primeiro a usar o termo, dizia que esta é a verdadeira origem e que a expressão foi adotada por causa dos professores da escola.

“Se havia lá uma escola com professores e normalistas, por que não poderia haver também outra de samba, com seus mestres e alunos?”
Para o musicólogo Almirante, o termo surgiu graças à popularidade dos instrutores dos tiros-de-guerra, que bradavam “Escola! Sentido!”. O termo pode ter vindo, segundo a escritora Eneida, dos ranchos-escola, onde se aprendia a cantar, dançar e sair em cortejo. O cronista carioca Jota Efegê dizia que os velhos batuqueiros dos morros da Providência e da Favela usavam o termo antes de 1928. E a denominação pode até ser do século passado, afirmava o jornalista Brício de Abreu, que num recorte da revista Gil Brás, de março de 1898, leu ... cordão carnavalesco exótico “Escola de Samba e da Serenata”.

Seja qual for a origem do nome, a escola de samba é talvez a maior criação do povo brasileiro, exemplo de organização e trabalho feito com amor e alegria.



EM SÃO PAULO O SAMBA COMEÇA NOS CORDÕES CARNAVALESCOS







Em São Paulo, o samba também é herança dos negros mesclada às tradições dos imigrantes. O primeiro grupo a sair às ruas foi a Sociedade Paulicéia Vagabunda, que desfilou em 1850 com carros alegóricos e mulheres estourando garrafas de champanha, escandalizando a população. No final da década, foliões fantasiados e mascarados faziam seu carnaval, elegendo até um Rei Momo e misturando-se a pequenos cordões e às baianas, que aproveitavam para vender seus quitutes em barracas na Praça da Sé e nas ruas Direita, 15 de Novembro e São Bento, limites da festa.

Cordões mais organizados surgiram em 1914, com Dionísio Barbosa, paulista que viveu no Rio de Janeiro. Ele fundou o Grupo Carnavalesco da Barra Funda, que desfilava nas ruas do bairro, e depois vieram Campos Elíseos, Mocidade do Lavapés, Paulistano e Cordão Esportivo e Carnavalesco Vai-Vai, representante do Bixiga. Formados em geral por uma só família, desfilavam sem roteiro fixo e deles nasceram as escolas de samba paulistanas.
A primeira nasceu em 1937, surgida do bloco Baianas Paulistas. Vieram depois a Lavapés, Rosas Negras, Brasil Moreno, Unidos da Vila Maria, Unidos do Peruche, Camisa Verde e Branco e Vai-Vai, que disputavam as palmas do povo em concursos sem regras. Até 1957 cada uma se apresentava como queria e os componentes faziam a própria fantasia.

Nos dez anos seguintes, os desfiles foram patrocinados por comerciantes e somente em 1968 oficializados pelo prefeito Faria Lima. A partir daí as escolas de São Paulo e de outras regiões do País passaram a se estruturar dentro do modelo carioca.



QUE FIM LEVOU O SAMBISTA TRADICIONAL?


O sambódromo foi a pá de cal na importância do sambista tradicional para a estrutura das escolas de samba. O luxo das fantasias, a altura dos carros alegóricos, o desfile cronometrado trocaram o samba-no-pé pelo visual.

“Dispostas no chão [grifo nosso], desfilando, todas as escolas apresentam as seguintes particularidades: canto e dança – a forma de expressão é o samba, que se exterioriza na escola, através do canto e da dança. A escola em peso canta o samba-enredo, desenvolvendo uma dança. O ato de sambar.”

Assim, os sambistas e historiadores Amaury Jório e Hiram Araújo descrevem a atuação das escolas de samba, a partir da primeira delas, a Deixa Falar, na festa carnavalesca do desfile anual.

Até o início dos anos de 1960, era assim. Desfile com compositores, bateria, passistas, baianas, mestre-sala e porta-bandeira, diretor de harmonia. A qualidade dos sambas-enredo ajudava a determinar a posição final da escola, na competição. E todas iam para a avenida brincar o carnaval. Espontaneamente, com a criatividade, o samba-no-pé, a arte popular aflorando no canto, na dança, os elementos básicos.

A classe média descobriu a folia e começou a se infiltrar e se apropriar de uma cultura que não era sua. A Mangueira protesta contra um jurado que declarou não dar nota boa a uma escola com cores de tamanho mau gosto. Ao vislumbrar os lucros, as escolas começaram a cobrar ingresso para os ensaios, em 1962, transformando-os lentamente em festas. Em 1963, o Salgueiro desfila com uma ala dançando minueto, coreografada por Mercedes Batista. O velho samba no pé perdia terreno. Os artesãos foram substituídos pelos cenógrafos. Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta são os pioneiros, sempre no Salgueiro. Os conservadores protestam, os inovadores aplaudem as mudanças, e cada vez menos sambistas são vistos nas escolas.

O relógio passa a aprisionar os desfiles. Com isso, os sambas ganham velocidade e perdem ritmo, para ajudar a cruzar a pista dentro do tempo. O Sambódromo é construído, justificando o nome, cujo sufixo dromo quer dizer “corrida”. As altíssimas arquibancadas levam o público para as alturas e os carnavalescos apelam para carros alegóricos cada vez mais altos, onde é impossível sambar. Luxuosos fantasiados agarram suportes para não cair e fingem cantar o samba. Mulheres, cada vez mais nuas, distribuem beijos e insinuações erotizantes. O olho das televisões mostra tudo para milhões de pessoas, no mundo inteiro. Segundo os comunicólogos, o maior espetáculo semovente do planeta.

O samba, os sambistas, as baianas, as passistas? Não fazem a menor falta neste maravilhoso show. Afinal, como poderiam eles sambar, pendurados a seis metros do solo?