terça-feira, 17 de junho de 2008

O Samba na Academia - Roda de Samba: Espaço de Memória, Educação Não-Formal e Sociabilidade



Possuo dois objetivos com este texto: (1) apresentar os pontos que mais me chamaram a atenção em relação ao trabalho de dissertação de mestrado de Eduardo Conegundes de Souza e (2) contextualizar o Bloco Amigos da Vila Mariana em um ambiente mais amplo, aproveitando a pesquisa do autor relacionada aos núcleos G.R.T.P. Morro das Pedras e Projeto Nosso Samba. E, transcende minha obrigação parabenizar Eduardo Conegundes de Souza, do Projeto Cupinzeiro, Campinas, pelo excelente e inspirador trabalho, colocado à disposição para consulta e para a história do samba e do país a partir de 2007. Acima de tudo, trata-se de uma leitura agradável, que remonta a história do samba, sua relação com a indústria fonográfica e o surgimento e atuação de núcleos culturais como forma de resistência à inibição gerada por estas à espontaneidade do samba como forma de manifestação cultural.

Fernando Pereira

(1) Pontos interessantes do trabalho
A dissertação, conforme o próprio autor, “tem como foco dois núcleos culturais do Estado de São Paulo que se valem da prática da roda de samba como elemento agregador e mediador das relações de sociabilidade” (SOUZA, 2007: p.4). São estes: G.R.T.P Morro das Pedras e Projeto Nosso Samba. Os objetivos são os de compreender a prática desses grupos e a relação destes com os meios de produção e reprodução da cultura. Foca o samba não como gênero musical, mas sim como forma de manifestação cultural, “que envolve o encontro comunitário marcado pelos diversos elementos que compõem o ambiente da roda de samba (tocar, cantar, dançar, comer, beber)” (p. 11). Objetivos cumpridos com muita competência.
O autor faz uma contextualização histórica e sociológica do samba. Em relação à São Paulo, cita o nascimento do samba rural e sua passagem para o urbano, com inter-relações com as culturas africanas. Considerei alguns trechos importantes, dentre muitas informações valiosas apresentadas pelo pesquisador. Dentre eles, destacam-se:

(a) Quanto à origem do termo samba: “A umbigada está etimologicamente relacionada à formação e emprego do termo samba que teria sido originário das línguas e dialetos africanos. O termo seria derivado de semba que no quimbundo significa umbigada, sendo que samba seria uma corruptela formada no Brasil. (...) A primeira menção impressa da palavra samba aparece numa revista ou jornal satírico de Pernambuco O Carapuceiro em edição de 03 de fevereiro de 1838. A contraposição entre o rural e o urbano parece ter grande relevância para o desenvolvimento da trajetória do samba em São Paulo” (SOUZA, Op. cit: 42-43).

(b) Quanto à origem do refrão: Outro ponto interessante é em relação ao surgimento do refrão, que é explicado dentro do contexto da umbigada, quando se faziam versos em torno de um ponto (refrão). Este ponto foi explicado como uma linguagem cifrada, o que serviria como estratégia dos escravos para não serem entendidos pelos brancos dominadores. (p. 63).

(c) Quanto à relação do samba com a industria fonográfica: aponta três marcos importantes dentro do desenvolvimento do samba enquanto musica gravada: (i) o samba tipo amaxixado (ii) o samba da Estácio de Sá, que é o do morro, o samba moderno (ver também sobre isso FENERICK, no site do bloco). (iii) pagodes, com foco no Cacique de Ramos. A grande questão colocada por SOUZA em relação à indústria fonográfica é a de que a partir do momento em que esta foi criada, passou-se a não haver mais a música produzida de maneira espontânea, sendo intermediada pelos meios de comunicação. Critica a apropriação do real termo pagode pela industria fonográfica dos anos 80, com os pagodes do Cacique de Ramos, que usavam instrumentos diferentes da linhagem tradicional. A partir daí, e com a impregnação de diversos grupos como Raça Negra, Só Preto Sem Preconceito, Negritude Jr. O pagode “deixa de ser um modo de expressão vindo do povo oprimido, para ser um veículo de difusão de uma lógica das classes dominantes e do capitalismo”. (p. 83).

(d) Quanto à controvérsia sobre o primeiro samba gravado: Antes de Pelo Telefone (Donga/Mauro de Almeida, 1917) teriam sido gravados Em Casa de Baiana (1911, instrumental, gravado para a casa Faulhaber, FAVORITE RECORD, 1452216) e A Viola está Magoada (1914, Baiano, Julia e o grupo da Casa Edson, ODEON – 120.444).

(2) Contextualização do Bloco Amigos da Vila Mariana

Em relação à análise dos grupos em questão, achei interessante realizar uma comparação de alguns pontos levantados por Eduardo com a atual situação do Bloco Amigos da Vila Mariana. Esta comparação está refletida no quadro abaixo. É importante deixar claro que a comparação não é no sentido de denegrir ou enaltecer quaisquer das agremiações, porém situar, principalmente o Bloco, que é algo com o qual convivemos diariamente, dentro de um contexto maior, para aprendizado e reflexões. Souza observou três tipos de liderança nesses grupos: (i) voltada para a organização; (ii) atuante na roda; (iii) comunicação entre o grupo e a comunidade mais ampla. (p. 20). O mais forte ponto em comum entre o G.R.T.P. Morro das Pedras e o Projeto Nosso Samba pareceu ser o objetivo de atuar como grupo de resistência contra a mídia na forma como é hoje, inibidora de movimentos espontâneos do samba.

Também nestes dois grupos, SOUZA demonstrou que os mesmos criam e compõem um espaço de memória, educação não-formal e sociabilidade. Por memória, leia-se “aquela memória que não encontrou nos meios oficiais suportes para que pudesse estar disponível ao grande público, por isso, trabalham com informações adquiridas no contato pessoal com os antigos sambistas e na busca de registros que não tiveram grande circulação. Assim, contribuem para a formação de uma memória do samba que passa a ser construída de forma compartilhada e que diz respeito À experiência de vida e a trajetória cultural das classes sociais que tiveram ao longo do tempo sua memória subjugada”. (p. 149). A definição de educação não-formal que pude extrair do texto é: “aquela que abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, construindo um processo permanente e não organizado (no sentido da escola formal). (...) Diverge ainda da educação formal no sentido de não fixação de tempos e locais e a flexibilidade na adaptação dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto (...) a justificação do campo da educação não escolar não pode ser construída contra a escola, nem servir a quaisquer estratégias de destruição dos sistemas públicos de ensino”. (AFONSO, A.J. 1992: 31 e 86 apud SOUZA, Op. cit: 29 e 31). Quanto à sociabilidade, é a interação propiciada pelas rodas, os encontros de amigos, familiares, a sensação de participação dentro de uma grande família, alegre, festiva, e fruto da manifestação samba.

Vejo que se fosse feita a fusão dos dois perfis de projetos da Vila Mariana (Roda do No Quintal e Roda do Ana Rosa), haveriam praticamente todos os pontos em comum. Porém, o que realmente falta para a Vila Mariana é a existência de um maior número de pessoas com um conhecimento mais amplo do samba, para a melhoria do aprendizado do samba. Isso poderia se dar de duas formas: (i) através da extensão da roda para mais sambistas com bagagem de repertório e conhecimento de sambas maiores e/ou; (ii) pesquisa (maciça e incansável) fonográfica, de letras ee história do samba por parte de todos os integrantes do Amigos da Vila Mariana. Porém, devo dizer que da minha parte, ao menos, muito aprendi e sei que ainda muito terei a aprender.

Quadro: Contextualização Bloco amigos da Vila Mariana / Morro das Pedras / Projeto Nosso Samba
Item MP NS VM (Q) VM (AR)
Ano de fundação Abr. 2001 Nov. 98 Jan.02 Jan.02
Origem São Mateus Osasco Vila Mariana Vila Mariana
Objetivo bem definido Sim Sim Sim Sim
Projeto comunitário Sim Sim Não Pode vir a ser
Cobrança de ingresso Não Não Sim Não
Problemas com espaço físico Sim Sim Não Sim
Canta só o que gosta, e não pra agradar Sim Sim Talvez Sim
Homenagem a sambistas bimestral Não mensal Não
Acredita que a midia atual inibe a espontaneidade do samba? Sim Sim Sim Sim
Média de pessoas participando da roda 27 20 8 20
Há pastoras? Não Sim, (7) Não Não
Idade média das pessoas da roda entre 18 e 45 Não definido entre 18 e 28 entre 18 e 45
Instrumentação tradicional tradicional tradicional tradicional
Acústico ou amplificado Acustico Acustico Amplificado Acustico
Formação de uma roda Sim Sim Não Sim
Foca a composição de seus integrantes de maneira sistemática? Não Sim recomeçando Não
Ambiente de memória Sim Sim Sim Sim
Ambiente de educação não-formal Sim Sim Sim Sim
Ambiente de sociabilidade Sim Sim Sim Sim
Materiais impressos são afixados no ambiente Sim Sim Não Não
Presença de familiares Sim Sim Sim Não
Manifestação mais coletiva ou individual Coletiva Coletiva Individual Coletiva
Há uma periodicidade? Sim Sim Sim Não
Foco no conhecimento do samba paulista ou carioca? Carioca Paulista Carioca Carioca

___________________
MP: Morro das Pedras
NS: Projeto Nosso Samba
VM (Q) Vila Mariana (No Quintal Bar)
VM (AR): Vila Mariana (Largo Ana Rosa)

Roda de Samba: Espaço de Memória, Educação Não-Formal e Sociabilidade
SOUZA, Eduardo Conegundes de. Roda de Samba: Espaço da memória, Educação Não-formal e Sociabilidade – Campinas, SP: [s/n], 2007. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Samba com Sotaque

Para alguns, sotaque, linguagem e batida dão ao samba paulista personalidade própria e peculiar. Outros nem gostam de comparar: em São Paulo, no Rio, no Brasil, é tudo uma coisa só



Por Tom Cardoso em Revista do Brasil


A imagem do Bom Jesus estava ali, nas pedras do Rio Tietê, altura de Pirapora (SP). Reza a lenda que o simples achado da peça fez um mudo falar. E desde aquele milagre, em 6 de agosto de 1725, fazendeiros de várias cidades do interior passaram a visitar o local em busca de proteção. Enquanto senhores rezavam, escravos, excluídos das cerimônias, batucavam. As romarias cresceram. Os batuques também. No lugar de caixotes, bumbos e zabumbas. Formou-se um caldeirão de ritmos, que Mário de Andrade abreviou como “samba rural paulista”. O samba rural urbanizou-se com toque interiorano.

Negros libertos das fazendas de café do interior rumavam para a capital, assim como os escravos de Santos – terra de Pai Felipe da Nação Nagô, sambista de terreiro do Monte Serrat, berço das primeiras escolas de samba da cidade, X-9 e Dois Pingüins. Em bairros nos arredores do Centro pipocaram festas de rua que mudariam para sempre o Carnaval da cidade. As escolas revelariam compositores como Eunice do Lavapés, Inocêncio da Camisa Verde, Xangô da Vila Maria, Carlão do Peruche e Nenê da Vila Matilde. No Largo da Banana, na Barra Funda, organizaram-se as primeiras rodas de capoeira, ou de tiririca, pretexto para batucar nas caixas de engraxate.

Geraldo Filme foi um dos primeiros a enaltecer as qualidades do samba paulista. Aos 10 anos, em 1937, compôs a primeira música, “Eu vou mostrar, eu vou mostrar, que o povo paulista também sabe cantar”, cantava para o pai, amante do samba carioca. As rodas de tiririca se espalharam. Toninho Batuqueiro, nascido em Piracicaba e crescido no bairro de Campos Elíseos, foi com sua caixa de engraxate batucar na Praça da Sé. Ali se formou um ponto de encontro de sambistas.

Se o samba dos engraxates, das rodas de tiririca, era carregado de malícia, Adoniran Barbosa, o mais famoso e aclamado compositor paulista, nada tinha de malandro. “E o samba de São Paulo é o de Adoniran Barbosa. Não tem malandragem nas letras, tampouco sotaque de Pirapora. É urbano, sotaque do Bexiga, italianado”, provoca Paulo Vanzolini, autor de Ronda e Volta por Cima. Para o octogenário Nenê da Vila Matilde, o samba paulista não tem cara: “É tudo uma coisa só”. Osvaldinho da Cuíca defende as origens do samba de Pirapora. Chapinha, do Samba da Vela, acha que samba combina com malandragem: “Não tenho vergonha em assumir minha admiração pelo samba do Rio, que nem é do Rio, é dos negros de todo o país”. Para T. Kaçula, do Samba Autêntico, São Paulo é cosmopolita e indecifrável: “Nunca vamos dar uma cara ao nosso samba. E isso o torna ainda mais interessante”.

A nova geração

Chapinha, Maurílio de Oliveira, Paqüera, Magnu Sousá, T. Kaçula são sambistas de primeira grandeza, que há anos vem mudando a cara da música de São Paulo. Cada vez mais jovens da periferia se interessam pelo samba, e o intenso trabalho de divulgação de dois grupos – Samba da Vela e Quinteto em Branco e Preto – e de um pesquisador incansável, T. Kaçula, tem muito a ver com isso. Magnu e Maurílio são do Quinteto em Branco e Preto, criado em 1997, na zona sul de São Paulo, e batizado pela madrinha Beth Carvalho. A história do grupo é curiosa. Magnu e Maurílio e os outros integrantes – Everson, Victor e Yvison – tocavam em bares de classe média, mas não um repertório de que gostavam. “Tinha de mandar ver Negritude Jr., Katinguelê, bandas que não faziam a nossa cabeça. Como o pessoal só pedia isso, não tinha jeito”, lembra Magnu.

O destino começou a mudar no Boca da Noite, tradicional bar do Bexiga, onde a velha guarda tocava samba bem diferente. Magnu conta que o dono do bar, o advogado e sambista Wilson Sucena, deu uma bronca geral. “Vocês ficam tocando pagode de terceira qualidade para a burguesia enquanto os branquelos daqui cantam samba de verdade e também ganham dinheiro.” Os “branquelos” eram uma galera da pesada, comandada por Eduardo Gudin. Magnu nunca mais precisou cantar que “a barata da vizinha está na sua cama”. Ele e Maurílio, meio sem querer, acabaram participando de outro momento importante para a música de São Paulo, junto com Chapinha e Paqüera.

Numa noite de segunda-feira, reuniram-se num velho armazém da Rua Dr. Antônio Bento, no bairro de Santo Amaro, com a idéia de juntar quem gostasse de samba e tocar até a meia-noite, já que todos acordavam cedo para o trabalho. “Estava tão bom que a gente tocou até de manhã, perdemos o controle”, conta Chapinha. Na semana seguinte, outro “descontrole”. Maurílio aconselhou a compra de um despertador. Magnu, de uma ampulheta. Chapinha sugeriu um galo. Paqüera acabou com a discussão: acender uma vela e, quando se apagasse, seria hora de ir. Nascia o Samba da Vela. O movimento reúne sambistas de todos os estilos e virou espaço cultural, com exposições de arte e saraus. Vale até rap ou sertaneja. “Aqui pode tocar de tudo. Quem manda é a vela”, brinca Chapinha.

Do outro lado da cidade, na Vila Madalena, zona oeste, no bar Ó do Borogodó, o músico T. Kaçula lidera um trabalho de valorização do samba paulista. Pela casa passaram músicos de todos os estilos e gerações, dispostos a tocar como Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Osvaldinho da Cuíca. Kaçula, líder do grupo Samba Autêntico, acertou recentemente uma parceria com Guga Stroeter, dirigente da ONG Sambatá, para lançar uma coleção de 12 discos de samba paulista. “Vai ter de tudo.” Os shows do Ó do Borogodó revelaram uma cantora talentosa, fã de Leny Andrade, Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida: Fabiana Cozza. “Há muitos jovens hoje interessados em redescobrir e difundir o samba”, diz a cantora. “E o Ó do Borogodó segue como vitrine de tudo isso. Tocam lá violonistas como Zé Barbeiro e Luizinho 7 Cordas e uma nova geração espetacular de músicos.”

Sambista sem varizes


Bons tempos aqueles em que se podia engraxar os sapatos na Praça da Sé e ouvir um Germano Mathias aos seus pés. Germano é representante do samba sincopado, apreciado por nomes como Geraldo Pereira, Blecaute, Jorge Veiga, Ciro Monteiro, Ary Cordovil e o gaúcho Caco Velho. “Sou português por parte de mãe, carioca por parte de pai e crioulo por parte do vizinho do meu pai”, explica, bem-humorado, sua paixão pelo samba.

Aos 72 anos, Germano preserva o jeito moleque dos tempos em que cabulava aula para cantar samba sincopado, nos anos 50. Metade da turma lustrava sapatos e os outros batucavam. Nascido no Pari, zona leste de São Paulo, saiu direto do centro da cidade para brilhar na Rádio Tupi. “Na rádio, achavam que eu era um cantor negro, por causa do balanço da minha voz. Só perceberam que eu não passava de um branquelão quando apareci na TV”, conta, orgulhoso.

O primeiro sucesso foi Minha Nega na Janela, de 1956. A Situação do Escurinho foi uma parceria com o compositor carioca Padeirinho surgida por acaso. “Eu estava jogando sinuca e um amigo, Aldacir Louro, disse que tinha um samba de um tal Padeirinho que era a continuação do Escurinho, sucesso do Cyro Monteiro. Gravei e estourei. Ganhei o prêmio Roquete Pinto. Hoje só ganho pinto”, brinca. Germano mora num modesto apartamento no Jardim Líder, periferia de São Paulo, e luta para sobreviver como músico. “Poucos cantam samba do meu jeito. Essa é a minha principal arma. Tem muito cantor novo aí que tenta cantar sincopado, mas não sabe dividir, não teve a escola que eu tive. Acho que sou o último dos moicanos.”

Nenê da Vila Matilde

Desde 1997, Nenê da Vila Matilde não é mais presidente da escola que leva seu nome, a terceira mais antiga de São Paulo, fundada em 1949. Aos 86 anos, ainda influi em decisões, dá pito nos dirigentes, reclama do samba-enredo e não poupa a turma da bateria. “Os caras não mudam nada, não renovam. A bateria está uma porcaria”, reclama. Em 1956, quando a escola começou a se tornar repetitiva, ele seguiu o conselho do pai, o carioca Aldantino, ou Mulato Véio, e viajou para o Rio em busca de inspiração. Voltou com uma nova batida na manga, o “culungundum”, mistura de maracatu com percussão, que revolucionaria o morno Carnaval paulistano. “Ouvi jongo numa igreja da Penha, passei pelas rodas da Lapa. E fiquei apaixonado pela batida da Mangueira. A batida de caixa, o estilo do surdo, era tudo diferente”, lembra. “Mostrei para o Paulistinha (compositor da Nenê), ele acrescentou o chocalho no meio da bateria. O pessoal do Peruche, da Vai-Vai ficou de boca aberta, escutavam de longe. Hoje a nossa bateria não faz mais barulho.”

Nenê, mineiro de Santos Dumont, chegou a São Paulo com 7 anos. À frente da escola mais popular da zona leste por quase meio século, tem orgulho de várias passagens. A introdução da batida do “culungundum” foi um marco, e só não dura até hoje, segundo ele, por falta de competência dos atuais mestres de bateria. “Eles não agüentam o tranco”, critica o sambista. Nenê foi um dos mais enfáticos a cobrar da então prefeita Luiza Erundina a construção de uma passarela do samba em São Paulo. “Fui pessoalmente exigir. Reclamei mesmo”, conta. Em 1991 Erundina inaugurou o sambódromo paulistano. O mestre rejeita comparações entre São Paulo e Rio. “Samba é samba em qualquer lugar. A diferença é o dinheiro. Os sambistas de lá nasceram com o bumbum pra lua. Aqui, não. Os políticos tiram dinheiro da gente e os caras que compram as escolas são tudo brancão ruim de samba.”

Paulista da gema


No começo dos anos 60, num boteco da Rua da Consolação, Osvaldinho da Cuíca comprou uma discussão com Adoniran Barbosa: existe ou não um samba genuinamente paulista ou samba é samba em qualquer cidade do Brasil? Para o autor de Saudosa Maloca, samba era uma coisa só: brasileiro e fim de papo. Osvaldinho, então no grupo Acadêmicos da Paulicéia, bateu o pé: o samba paulista tinha, sim, linguagem própria, interiorana, com uma levada “calangueada”. O próprio Adoniran era uma prova de sua teoria. Mas não teve acordo. Ficaram de cara amarrada até Osvaldinho gravar, em 1967, Mulher, Patrão e Cachaça, de Adoniran, que lhe valeu o convite para integrar os Demônios da Garoa.

Agora, Osvaldinho volta à polêmica. Para ele existe um samba paulista, genuíno, valente, que precisa ser resgatado com urgência. “Até os mais estudiosos, como o pessoal do Quinteto em Branco e Preto, do Samba da Vela, fazem samba carioca sem saber. Compõem no padrão da Velha Guarda da Portela, têm vergonha de cantar com sotaque paulista”, afirma. “Há um certo preconceito com o sotaque. Por exemplo, a apresentadora Angélica nasceu na Mooca e aparece na televisão puxando erres e esses. Eu fico puto.”

Osvaldinho não renega as influências cariocas. Tocou com quase todos os grandes compositores do Rio, de Ismael Silva a Nelson Cavaquinho. “Só não gravei com Roberto Carlos e Chico Buarque”, diz. “Quando gravei Mulher, Patrão e Cachaça fiz um sucesso danado no Rio. Todos queriam saber quem estava tocando cuíca daquele jeito tão diferente”, lembra. Fundador da ala de compositores da Vai-Vai, o mestre é de opinião que o Carnaval paulista evoluiu, embora lamente algumas perdas. “Ganhou em profissionalismo, é um espetáculo muito bem organizado. O samba-enredo perdeu qualidade. Mas mesmo com essa neurose toda, com dez compositores para fazer um samba, você sempre acha alguém bom. Só não venha dizer que essas marchas, tocadas em velocidade, podem ser chamadas de samba. Não é, não.”

terça-feira, 3 de junho de 2008

Samba e devoção em Pirapora

Na chegada a Pirapora do Bom Jesus, a sinuosa Estrada dos Romeiros é ladeada pelo rio Tietê, cujas águas poluídas, cheias de espuma, exalam um odor nada agradável. A localidade, na maior parte do ano, costuma ser calma, com exceção da Semana Santa e da festa do padroeiro da cidade, de 3 a 6 de agosto. Nessas ocasiões, o centro, onde ficam o comércio, a igreja e o coreto, é praticamente tomado pelos visitantes.

Pirapora é ponto de destino de peregrinação religiosa. Grosso modo, poderia ser comparada a uma mini-Aparecida do Norte. As pequenas lojas ostentam fitinhas, retratos e estátuas de uma variedade incontável de santos católicos. Ao longo do ano, o município atrai pessoas de todas as partes do Brasil, especialmente romeiros, que vêm pagar promessas e fazer novos pedidos a Bom Jesus.

Em meio a todo esse misticismo e religiosidade, um outro elemento cultural faz parte do imaginário popular dessa pequena cidade da região oeste da Grande São Paulo, distante 54 quilômetros da capital, e que tem pouco mais de 12 mil habitantes. Na história de Pirapora do Bom Jesus, há registros de uma manifestação para lá de pagã. O jeito pacato piraporense nem de longe denuncia que aquele foi um pólo aglutinador de grupos do samba paulista entre o final do século 19 e meados do século seguinte.

O samba e a devoção religiosa parecem contraditórios, mas naquela localidade acabaram se tornando faces de uma mesma moeda. Por alguns anos a expressão musical ficou um tanto esquecida, mas desde a última década nota-se, por parte da própria população e até do poder público, um esforço para retomar a memória e a tradição sambista da cidade.

Religião e cultura

A visita à cidade é uma prática religiosa que existe desde a descoberta da imagem de Bom Jesus às margens do rio Tietê, em 1725. São conhecidas diversas versões desse acontecimento, recontadas pelos moradores de Pirapora há várias gerações.

No século 18, havia ainda muitas missões jesuíticas espalhadas pelo interior paulista. Esses redutos religiosos, no entanto, sofriam constantes ataques das bandeiras. Para não abandonar as imagens sagradas quando eram obrigados a fugir, os jesuítas as enterravam ou lançavam no rio. Supõe-se que foi este último o destino dado à estátua de Bom Jesus, que, depois de ser levada pela correnteza, teria parado entre as pedras.

Segundo os piraporenses, a imagem de um metro e oitenta, toda entalhada em madeira, foi assim encontrada. Alguns afirmam que escravos de uma fazenda das redondezas foram os autores da descoberta, outros a atribuem a tropeiros ou mineradores. O fato é que ela foi resgatada e levada para um paiol de milho, que depois se incendiou. Quando, após destruir todo o lugar, as chamas afinal se apagaram, as pessoas acreditaram presenciar o primeiro milagre de Bom Jesus: a imagem, ao contrário de tudo mais, não havia sido tocada pelo fogo.

Foi então decidido que a imagem de Bom Jesus seria levada para o centro de Santana do Parnaíba, o único local em que havia uma capela. Pirapora, naquela época, era apenas um vilarejo pertencente a essa cidade e só se tornou independente em 1959. No meio do caminho, o carro de boi que a carregava atolou, e não houve meio de fazê-lo mover-se. Nesse momento, um homem que acompanhava a procissão disse: "Bom Jesus não quer sair de Pirapora. Voltem!" – o que foi imediatamente entendido como o segundo milagre, já que o autor da frase era, na verdade, mudo. A imagem acabou, assim, retornando para onde estava. "Desde então, há 280 anos ela está aqui na cidade", conta o padre Alvarino Bienzobás Júnior, responsável pela igreja de Pirapora até 2006.

Ao longo dos anos, a imagem de Bom Jesus começou a ganhar fama de milagreira. Grupos de todas as classes sociais, da elite à população rural do entorno de Pirapora, para lá se dirigiam. "Houve então um afluxo muito grande de negros, praticantes do samba em seus lugares de origem", explica o padre Alvarino. Em São Paulo, a presença deles era expressiva por causa do ciclo da cana e, posteriormente, do café.

O acesso à cidade não era fácil. A Estrada dos Romeiros nada mais era que uma trilha pela qual só passavam carros de boi e cavalos. Por esse motivo, os negros que chegavam a Pirapora permaneciam no local por vários dias, em hotéis, acampamentos ou nos chamados barracões – duas edificações pertencentes à Igreja destinadas a alojar aqueles que não tinham dinheiro para pagar hospedagem.

Os romeiros daquela época tinham, então, muito tempo livre depois de cumprir o ritual religioso. Entre uma oração e outra, divertiam-se em festas, que aconteciam nos barracões ou mesmo na rua. Essas comemorações eram repletas de dança, música, bebida e encontros com os amigos.

A música era marcada pelo uso de instrumentos de percussão, como as zabumbas, tambores, reco-recos e chocalhos. O bumbo foi o que caracterizou o samba paulista e, como explica o antropólogo Marcelo Manzatti, "é possível identificar a família dos tipos de samba rural a partir do seu uso". Essa centralidade do tambor grave é de origem africana, apesar de o instrumento ser europeu. "O bumbo é um tambor que dá o ritmo de acordo com a dança e a situação, enquanto os tambores menores seguram a marcação", explica o estudioso.

Essa tradição musical se caracteriza também por uma hierarquia entre seus membros. O chefe ou dono do samba é a pessoa mais respeitada do grupo e é quem detém os instrumentos. Outra figura de importância é o tocador de bumbo, que dá o tom das cantigas e das coreografias.

Nascedouro ou aglutinador?

"Pirapora tornou-se ponto de convergência dos tocadores de samba. A música era praticada numa dezena de cidades do interior e até na própria capital, no contexto de festas religiosas ou ainda em terreiros. Pirapora do Bom Jesus não é o lugar originário do samba, como o pessoal gosta de falar", esclarece Manzatti.

A documentação mais antiga sobre o samba de bumbo é um relato de 1856 sobre uma festa junina de uma fazenda de café em Piracicaba. "Como era uma manifestação de excluídos, não há muitos registros formais. No entanto, existem depoimentos de que o samba em Pirapora acontecia já na passagem do século 19 para o 20, a partir dos grupos que visitavam a cidade durante a festa de Bom Jesus", diz o antropólogo. As pessoas vinham de diferentes lugares de São Paulo, como Capivari, Itu, Tietê, Jundiaí e Campinas, e também de Minas Gerais.

A confluência desses grupos contribuiu para que a cidade desenvolvesse um ritmo único. "O samba de Pirapora é híbrido, porque congrega características de outras ramificações e vários estilos do samba rural, que não é homogêneo", descreve Manzatti. Entre os diversos tipos, dois se destacaram: o caipira de Pirapora, que resgata a tradição do samba de roda, e o campineiro, feito por negros com batuques africanos, herança da época das senzalas.

A rivalidade entre os grupos era instigada e consagrada nas disputas dos repentes, com improvisação de versos. Nas letras surgia a reflexão sobre um acontecimento do cotidiano ou a realidade humilde e dura vivida por esses negros.

Repressão

Naquele período, os negros eram vítimas de preconceito explícito e de marginalização social. Por esse motivo, o samba também não era visto com bons olhos. Não foram raros os casos em que houve repressão ou cerceamento tanto por parte do poder público, que tratava a questão como caso de polícia, como da Igreja, que considerava o ritmo muito lascivo para os padrões católicos. No entanto, a própria Igreja oscilava em sua atitude, ora mostrando-se tolerante, para poder atrair as pessoas, ora reprimindo essa manifestação.

Como não havia leis que vetassem oficialmente o samba, a classificação de danças como "desonestas" e "indecentes" era de ordem subjetiva. "Atos de controle, como proibir o samba dentro do barracão ou que ocorresse em determinados horários e locais, criaram dificuldades para que ele acontecesse naturalmente, se desenvolvesse e crescesse. A repressão permeou todo o cotidiano e teve influência na forma como o samba se organiza hoje", considera Manzatti.

Devido à segregação racial e social, não eram muitos os brancos que participavam do samba. A aproximação aconteceu aos poucos. Em Pirapora, Honorato Missé (1903-1964) ficou famoso por constituir, em 1930, o primeiro grupo de samba de roda da cidade de que se tem notícia. Sitiante branco com condição financeira um pouco melhor do que a dos negros, ele era considerado "dono do samba", porque possuía os instrumentos musicais.

Segundo Policarpo José da Cruz, assessor da Secretaria de Cultura e Turismo da prefeitura da cidade, Missé não tinha um grupo fixo de tocadores: "O pessoal ficava dançando, alguém chegava e batia no bumbo. Era divertimento para todo mundo, uma democracia. Todos entravam [na roda], tocavam e ninguém mandava", diz.

O grupo Samba de Roda de Pirapora, de Missé, se dispersou com a morte de seu fundador, mas, ainda hoje, há dois remanescentes daquela época: Maria Esther Camargo de Lara, de 83 anos, e João Alves do Amaral, de 71, mais conhecido como João do Pasto.

Decadência

Por 20 anos, o samba ficou praticamente esquecido em Pirapora. A morte de Honorato Missé contribuiu em grande parte para isso, assim como a notável diminuição dos visitantes religiosos. Fato é que por essa época o grupo de sambistas campineiro deixou de ir a Pirapora todos os anos, assim como os de outros municípios vizinhos.

Padre Alvarino calcula que a queda do número de pessoas na cidade foi de 85% nos últimos 30 anos, mas a diminuição mais significativa ocorreu entre os anos de 2000 e 2005. "O que mais atrapalha é a falta de poder aquisitivo. Não é todo mundo que tem recursos para ir até Pirapora. Hoje, os acessos à cidade são mais fáceis, mas, em compensação, tudo custa dinheiro." Nos anos 1950, os barracões foram desativados e, depois, demolidos, o que, no dizer de dona Maria Esther, contribuiu para o fim da "romerada".

O agravamento da poluição do rio Tietê, de onde muitos romeiros tiravam os peixes para se alimentar ou vender, e o crescimento da cidade de Aparecida do Norte como centro religioso foram outros fatores que contribuíram para o afastamento dos visitantes. Além disso, um estudo do sociólogo Octavio Ianni mostra que, com a expectativa de ascensão, uma parcela dos negros que alcançava padrões de classe média começou a deixar para trás todo o passado e tradições ligados à vida de escravos e às raízes africanas.

Para Manzatti, a cidade acabou sendo vítima de sua própria fama. "A festa cresceu muito", diz ele. Pirapora não teve infra-estrutura para suportar tanta demanda. Mesmo hoje, com movimento menor, cerca de 80 romarias seguem para lá ao longo de todo o ano.

A Igreja calcula que a cidade recebe de 7 mil a 10 mil visitantes por mês, que se concentram principalmente nos domingos. O movimento aumenta na Semana Santa, quando chegam até 40 mil pessoas entre o Domingo de Ramos e o da Páscoa. Em agosto, o número sobe para 80 mil a 90 mil, por causa do aniversário da cidade e das homenagens ao padroeiro.

Renovação

A revitalização do movimento musical na cidade veio há menos de uma década, com a participação de dona Maria Esther e seu João do Pasto. Outros homens e mulheres, de idades variadas, fazem parte do novo grupo que se formou, cuja função é diversa daquela de décadas atrás. "Hoje o samba é feito para apresentação pública, não existe mais como lazer. Antes era uma brincadeira sem compromisso de representar a cidade, mas agora está bem diferente", considera Manzatti. O antropólogo destaca o empobrecimento dos versos das músicas: "Eles não improvisam mais, apresentam apenas coisas que eram cantadas anos atrás. Nesse sentido, o samba se descaracterizou bastante".

O sambista Osvaldinho da Cuíca, de São Paulo, tem uma visão um pouco diferente. Segundo ele, a tradição foi preservada em Pirapora, ainda que a música esteja bem modificada em sua batida. "O samba de Pirapora é puro em sua essência e na sua inocência", explica.

Para seu João do Pasto, o ideal seria que as crianças se envolvessem com o samba desde cedo, para que as próximas gerações pudessem levar adiante a tradição. Graziela Guariglia Costa, secretária de Cultura e Turismo da prefeitura local, também demonstra preocupação com a permanência dessa manifestação. "A música é fundamental não só para a cidade, mas também para o estado de São Paulo. Pirapora tem a responsabilidade de preservá-la. Não podemos deixar que seja esquecida", afirma ela.

Influências e transformações

Com a decadência da economia cafeeira e, ao mesmo tempo, a ascensão do pólo industrial da capital, houve uma migração da população, que acabou levando na bagagem seu samba para a zona urbana. "As figuras mais importantes e fundadoras do samba da capital de São Paulo são tributárias do samba rural paulista", afirma Manzatti. Ele cita músicos como Toniquinho Batuqueiro, que era de Piracicaba, Henricão da Vai-Vai, de Itapira, Geraldo Filme, de São João da Boa Vista, como algumas das personalidades que levaram a tradição sambista para a capital.

Com o passar do tempo, todas as características do samba foram se alterando. "São Paulo era uma vila e sempre copiou o Rio de Janeiro, que há muito já era uma referência cultural. Mas antes não existiam meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão, o que preservava um modelo próprio paulista e outro carioca. Atualmente, é tudo mais homogêneo", observa o antropólogo. A seu ver, o momento radical de mudança do samba paulistano se deu no final dos anos 1960 e início dos 70, quando se organizaram as primeiras ligas carnavalescas em São Paulo.

O samba paulista tinha uma característica própria que foi se perdendo. Antes, era notável a influência do choro e do ritmo das bandas militares, acrescidos do uso da viola e instrumentos de sopro. A bateria era menor e sua rítmica vinha dos cordões e do samba rural.

Segundo o antropólogo, o lento e longo processo de transformação da música tem a ver ainda com a realidade das pessoas que a executam e com as alterações das estruturas sociais e econômicas. "A cultura é um movimento dinâmico por si só, mas as mudanças aconteceram também devido à carência de encontros e instrumentos, além da exclusão social e cultural. O samba rural sofreu modificações nas cidades de origem, depois em Pirapora e, então, na cidade de São Paulo, onde acaba perdendo força."

"Grande parte do que a gente faz tem inspiração no modismo que vingou, que é o do padrão carioca. O componente caipira do samba paulista não existe mais", lamenta Osvaldinho da Cuíca.


Os remanescentes do samba

João Alves do Amaral, de 71 anos, ficou conhecido como João do Pasto porque sempre trabalhou nos pastos e com criação de animais. Casado, com filho e netos, ele é homem do samba há mais de 60 anos.

Quando pequeno, morava nas proximidades de Jundiaí. Antes dos dez anos, teve o primeiro contato com o samba: "Conheci o Honorato Missé na festa de São Roque do Barreiro, que acontecia todo dia 15 de agosto. Lá, vi eles tocarem e gostei do samba. Foi o Honorato quem me ensinou as letras e o caminho", conta.

Em 1949, seu João do Pasto se mudou para Pirapora e lá continuou acompanhando a música de Missé. Assim, acabou conhecendo os negros sambadores que iam à cidade. "Naquele ano, ainda existia o barracão. Entrei no samba dos pretos. Não podia, mas eu era pequeno e curioso. Os instrumentos eram diferentes, tinha mais bumbo. Nas danças havia a umbigada, a dança dos bugres."

Dona Maria Esther concorda que o samba dos negros era privativo: "Branco não participava do samba, que era só deles. Eu era pequenininha e entrava, mas eles me tiravam", recorda. "Ficava na porta do barracão, olhando para ver se me deixavam passar. Aos poucos, permitiram. Aprendi a dançar direito com eles".

A sambista de 83 anos conta que pulava a janela de madrugada para sambar no barracão. "Eu era mocinha nova, meu pai tinha cuidado e por isso ia me buscar. Mas eu não namorava, não tinha malícia de nada. Tomei tanta surra do meu pai com vara de marmelo..."

Com a formação do novo grupo, seu João do Pasto assumiu a posição de tocador de reco-reco. "É um instrumento que tem ritmo para acompanhar o samba. Precisa ter ouvido para a coisa, senão não funciona", diz. "Com a música a gente se distrai e se diverte, mesmo não ganhando nada. Eu vou até o fim tocando, não desisto, não", afirma.

Quem vê dona Maria Esther, idosa mas preocupada em se maquiar com batom e rouge vermelhos antes da apresentação, surpreende-se com sua voz forte, puxadora do samba. "A idade não importa, o que regula é a saúde e o rebolado", costuma dizer.




NATÁLIA SUZUKI - www.sescsp.org.br