Possuo dois objetivos com este texto: (1) apresentar os pontos que mais me chamaram a atenção em relação ao trabalho de dissertação de mestrado de Eduardo Conegundes de Souza e (2) contextualizar o Bloco Amigos da Vila Mariana em um ambiente mais amplo, aproveitando a pesquisa do autor relacionada aos núcleos G.R.T.P. Morro das Pedras e Projeto Nosso Samba. E, transcende minha obrigação parabenizar Eduardo Conegundes de Souza, do Projeto Cupinzeiro, Campinas, pelo excelente e inspirador trabalho, colocado à disposição para consulta e para a história do samba e do país a partir de 2007. Acima de tudo, trata-se de uma leitura agradável, que remonta a história do samba, sua relação com a indústria fonográfica e o surgimento e atuação de núcleos culturais como forma de resistência à inibição gerada por estas à espontaneidade do samba como forma de manifestação cultural.
Fernando Pereira
(1) Pontos interessantes do trabalho
A dissertação, conforme o próprio autor, “tem como foco dois núcleos culturais do Estado de São Paulo que se valem da prática da roda de samba como elemento agregador e mediador das relações de sociabilidade” (SOUZA, 2007: p.4). São estes: G.R.T.P Morro das Pedras e Projeto Nosso Samba. Os objetivos são os de compreender a prática desses grupos e a relação destes com os meios de produção e reprodução da cultura. Foca o samba não como gênero musical, mas sim como forma de manifestação cultural, “que envolve o encontro comunitário marcado pelos diversos elementos que compõem o ambiente da roda de samba (tocar, cantar, dançar, comer, beber)” (p. 11). Objetivos cumpridos com muita competência.
O autor faz uma contextualização histórica e sociológica do samba. Em relação à São Paulo, cita o nascimento do samba rural e sua passagem para o urbano, com inter-relações com as culturas africanas. Considerei alguns trechos importantes, dentre muitas informações valiosas apresentadas pelo pesquisador. Dentre eles, destacam-se:
(a) Quanto à origem do termo samba: “A umbigada está etimologicamente relacionada à formação e emprego do termo samba que teria sido originário das línguas e dialetos africanos. O termo seria derivado de semba que no quimbundo significa umbigada, sendo que samba seria uma corruptela formada no Brasil. (...) A primeira menção impressa da palavra samba aparece numa revista ou jornal satírico de Pernambuco O Carapuceiro em edição de 03 de fevereiro de 1838. A contraposição entre o rural e o urbano parece ter grande relevância para o desenvolvimento da trajetória do samba em São Paulo” (SOUZA, Op. cit: 42-43).
(b) Quanto à origem do refrão: Outro ponto interessante é em relação ao surgimento do refrão, que é explicado dentro do contexto da umbigada, quando se faziam versos em torno de um ponto (refrão). Este ponto foi explicado como uma linguagem cifrada, o que serviria como estratégia dos escravos para não serem entendidos pelos brancos dominadores. (p. 63).
(c) Quanto à relação do samba com a industria fonográfica: aponta três marcos importantes dentro do desenvolvimento do samba enquanto musica gravada: (i) o samba tipo amaxixado (ii) o samba da Estácio de Sá, que é o do morro, o samba moderno (ver também sobre isso FENERICK, no site do bloco). (iii) pagodes, com foco no Cacique de Ramos. A grande questão colocada por SOUZA em relação à indústria fonográfica é a de que a partir do momento em que esta foi criada, passou-se a não haver mais a música produzida de maneira espontânea, sendo intermediada pelos meios de comunicação. Critica a apropriação do real termo pagode pela industria fonográfica dos anos 80, com os pagodes do Cacique de Ramos, que usavam instrumentos diferentes da linhagem tradicional. A partir daí, e com a impregnação de diversos grupos como Raça Negra, Só Preto Sem Preconceito, Negritude Jr. O pagode “deixa de ser um modo de expressão vindo do povo oprimido, para ser um veículo de difusão de uma lógica das classes dominantes e do capitalismo”. (p. 83).
(d) Quanto à controvérsia sobre o primeiro samba gravado: Antes de Pelo Telefone (Donga/Mauro de Almeida, 1917) teriam sido gravados Em Casa de Baiana (1911, instrumental, gravado para a casa Faulhaber, FAVORITE RECORD, 1452216) e A Viola está Magoada (1914, Baiano, Julia e o grupo da Casa Edson, ODEON – 120.444).
(2) Contextualização do Bloco Amigos da Vila Mariana
Em relação à análise dos grupos em questão, achei interessante realizar uma comparação de alguns pontos levantados por Eduardo com a atual situação do Bloco Amigos da Vila Mariana. Esta comparação está refletida no quadro abaixo. É importante deixar claro que a comparação não é no sentido de denegrir ou enaltecer quaisquer das agremiações, porém situar, principalmente o Bloco, que é algo com o qual convivemos diariamente, dentro de um contexto maior, para aprendizado e reflexões. Souza observou três tipos de liderança nesses grupos: (i) voltada para a organização; (ii) atuante na roda; (iii) comunicação entre o grupo e a comunidade mais ampla. (p. 20). O mais forte ponto em comum entre o G.R.T.P. Morro das Pedras e o Projeto Nosso Samba pareceu ser o objetivo de atuar como grupo de resistência contra a mídia na forma como é hoje, inibidora de movimentos espontâneos do samba.
Também nestes dois grupos, SOUZA demonstrou que os mesmos criam e compõem um espaço de memória, educação não-formal e sociabilidade. Por memória, leia-se “aquela memória que não encontrou nos meios oficiais suportes para que pudesse estar disponível ao grande público, por isso, trabalham com informações adquiridas no contato pessoal com os antigos sambistas e na busca de registros que não tiveram grande circulação. Assim, contribuem para a formação de uma memória do samba que passa a ser construída de forma compartilhada e que diz respeito À experiência de vida e a trajetória cultural das classes sociais que tiveram ao longo do tempo sua memória subjugada”. (p. 149). A definição de educação não-formal que pude extrair do texto é: “aquela que abrange todas as possibilidades educativas no decurso da vida do indivíduo, construindo um processo permanente e não organizado (no sentido da escola formal). (...) Diverge ainda da educação formal no sentido de não fixação de tempos e locais e a flexibilidade na adaptação dos conteúdos de aprendizagem a cada grupo concreto (...) a justificação do campo da educação não escolar não pode ser construída contra a escola, nem servir a quaisquer estratégias de destruição dos sistemas públicos de ensino”. (AFONSO, A.J. 1992: 31 e 86 apud SOUZA, Op. cit: 29 e 31). Quanto à sociabilidade, é a interação propiciada pelas rodas, os encontros de amigos, familiares, a sensação de participação dentro de uma grande família, alegre, festiva, e fruto da manifestação samba.
Vejo que se fosse feita a fusão dos dois perfis de projetos da Vila Mariana (Roda do No Quintal e Roda do Ana Rosa), haveriam praticamente todos os pontos em comum. Porém, o que realmente falta para a Vila Mariana é a existência de um maior número de pessoas com um conhecimento mais amplo do samba, para a melhoria do aprendizado do samba. Isso poderia se dar de duas formas: (i) através da extensão da roda para mais sambistas com bagagem de repertório e conhecimento de sambas maiores e/ou; (ii) pesquisa (maciça e incansável) fonográfica, de letras ee história do samba por parte de todos os integrantes do Amigos da Vila Mariana. Porém, devo dizer que da minha parte, ao menos, muito aprendi e sei que ainda muito terei a aprender.
Item | MP | NS | VM (Q) | VM (AR) |
---|---|---|---|---|
Ano de fundação | Abr. 2001 | Nov. 98 | Jan.02 | Jan.02 |
Origem | São Mateus | Osasco | Vila Mariana | Vila Mariana |
Objetivo bem definido | Sim | Sim | Sim | Sim |
Projeto comunitário | Sim | Sim | Não | Pode vir a ser |
Cobrança de ingresso | Não | Não | Sim | Não |
Problemas com espaço físico | Sim | Sim | Não | Sim |
Canta só o que gosta, e não pra agradar | Sim | Sim | Talvez | Sim |
Homenagem a sambistas | bimestral | Não | mensal | Não |
Acredita que a midia atual inibe a espontaneidade do samba? | Sim | Sim | Sim | Sim |
Média de pessoas participando da roda | 27 | 20 | 8 | 20 |
Há pastoras? | Não | Sim, (7) | Não | Não |
Idade média das pessoas da roda | entre 18 e 45 | Não definido | entre 18 e 28 | entre 18 e 45 |
Instrumentação | tradicional | tradicional | tradicional | tradicional |
Acústico ou amplificado | Acustico | Acustico | Amplificado | Acustico |
Formação de uma roda | Sim | Sim | Não | Sim |
Foca a composição de seus integrantes de maneira sistemática? | Não | Sim | recomeçando | Não |
Ambiente de memória | Sim | Sim | Sim | Sim |
Ambiente de educação não-formal | Sim | Sim | Sim | Sim |
Ambiente de sociabilidade | Sim | Sim | Sim | Sim |
Materiais impressos são afixados no ambiente | Sim | Sim | Não | Não |
Presença de familiares | Sim | Sim | Sim | Não |
Manifestação mais coletiva ou individual | Coletiva | Coletiva | Individual | Coletiva |
Há uma periodicidade? | Sim | Sim | Sim | Não |
Foco no conhecimento do samba paulista ou carioca? | Carioca | Paulista | Carioca | Carioca |
___________________
MP: Morro das Pedras
NS: Projeto Nosso Samba
VM (Q) Vila Mariana (No Quintal Bar)
VM (AR): Vila Mariana (Largo Ana Rosa)
Roda de Samba: Espaço de Memória, Educação Não-Formal e Sociabilidade
SOUZA, Eduardo Conegundes de. Roda de Samba: Espaço da memória, Educação Não-formal e Sociabilidade – Campinas, SP: [s/n], 2007. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.