quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Polêmica de Sambista

Retirado do O POVO


José Adriano Feneric


Autor de livro sobre Noel Rosa narra as polêmicas envolvendo o compositor e Wilson Batista. José Adriano afirma ainda que Noel deu ao samba consciência do seu aspecto popular


A história dos primórdios do samba poderia muito bem ser contada por meio das polêmicas travadas entre os sambistas. Desde as disputas pela autoria do famoso Pelo Telefone (gravado em 1917), tido como o "primeiro samba", até o entrevero entre Sinhô, o aclamado Rei do Samba, e a "turma" do Pixinguinha (Donga, China etc.) na década de 1920, o samba, de certo modo, foi se criando e se formando em meio a polêmicas e discussões. Noel Rosa, como não poderia ser diferente, também deu sua contribuição à maturação do samba por meio de uma longa polêmica com Wilson Batista, travada exclusivamente nas regras da arte. Dessa polêmica entre Noel e Wilson, ou a ela relacionada, é preciso que se diga imediatamente, saíram verdadeiros clássicos do repertório noelesco, tais como: Palpite Infeliz e Feitiço da Vila. Apenas por isso já valeria a pena relembrar esse debate entre Wilson e Noel. Entretanto, o que quero chamar a atenção é para uma questão que se colocava como pano de fundo em tal polêmica: a mercantilização do samba e a profissionalização do sambista. 




A polêmica entre Noel e Wilson teve início em 1933, por ocasião do lançamento do samba Lenço no Pescoço. Gravado por Silvio Caldas, este samba de Wilson Batista dizia em seus versos iniciais: 'Meu chapéu do lado/ tamanco arrastando/ lenço no pescoço/ navalha no bolso/ eu passo gingando/ provoco e desafio/ eu tenho orgulho em ser tão vadio...'. Essa descrição do malandro e essa apologia da vadiagem não passariam desapercebidas em 1933. Como de fato não passaram. Muitos compositores da época recriminaram publicamente este samba, sendo que o compositor e jornalista Orestes Barbosa chegou a publicar em sua coluna: "num momento em que se faz a higiene poética do samba, a nova produção de Silvio Caldas, pregando o crime por música, não tem perdão". Num momento em que o samba se profissionalizava nas rádios comerciais - que associavam prestígio e aceitação social de uma música com a possibilidade de atrair mais patrocinadores - não é difícil de entender as palavras de Orestes. Todavia, a resposta mais contundente a Lenço no Pescoço, e a qual o próprio Wilson levaria em conta, veio de Noel Rosa. O Poeta da Vila, ainda em 1933, responderia a Wilson com Rapaz Folgado. Este samba de Noel responde verso a verso o samba de Wilson: 'Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ E tira do pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora essa navalha/ Que te atrapalha'. Além disso, nos versos finais de seu samba, Noel ainda diz: 'Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pra tirar/ Todo o valor do sambista/ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de malandro/ E sim de rapaz folgado'. 

A questão da profissionalização do sambista, no disco e no rádio, estava na pauta das discussões do início da década de 1930. Quando Noel responde ao samba de Wilson Batista, ele o faz visando preservar a imagem do sambista, do compositor, num meio onde as possibilidades de se viver do samba já podiam ser vislumbradas. O Poeta da Vila, que sempre optou por uma estratégia diferente para abordar o malandro, "desmonta" a personagem de Wilson Batista, tanto no seu aspecto físico (da indumentária) como no seu modo de se relacionar com o samba, e a recoloca, por meio de "propostas", num plano regido por novas possibilidades de atuação. Noel tem o cuidado de não atacar diretamente o malandro, ele prefere dizer que é a palavra malandro o fator que estaria tirando "todo o valor do sambista". Não sendo o malandro propriamente dito o alvo de Noel, nos resta verificar o criador de sambas (o compositor). Nesse quesito, o Filósofo do Samba, propõe ao compositor popular o "papel e lápis". Isto é, propõe ao sambista que, senão totalmente ao menos em parte, substitua a "experiência vivida" pelo conhecimento como instrumento para a criação. Noel, assim, propõe ao compositor que ao menos leve em conta as novas relações do samba com a sociedade, para não dizer com o mercado de música, e termina aconselhando o malandro (compositor) a "arranjar um amor e um violão" (os dois temas - amor e violão - aceitos pela música popular do período e passíveis de serem veiculados pelas rádios e ouvidos pelo "povo civilizado": os nossos queridos ouvintes). Interessava ao Poeta da Vila, tal como a outros sambistas da época, não podemos nos esquecer, que o samba tivesse um reconhecimento social e comercial, e o rádio se apresentava como o grande meio difusor de música do período. 

A polêmica entre Noel e Wilson, iniciada em 1933, se arrastaria ainda por mais alguns sambas. Seja como for, no decorrer dos anos da polêmica, Noel compõe em 1934 - (sem o intuito de prolongar a discussão, até porque por esta época ele já nem se lembrava mais dela) -, o Feitiço da Vila, uma música na qual o Filósofo do Samba, mais uma vez, procurava homenagear seu bairro, Vila Isabel: 'A Vila tem/ um feitiço sem farofa/ sem vela e sem vintém/ que nos faz bem/ tendo o nome de Princesa/ transformou o samba/ num feitiço decente/ que prende a gente'... Esse samba provocou a resposta imediata de Wilson, com É Conversa Fiada, e a tréplica de Noel com Palpite Infeliz. Mas é o Feitiço da Vila que aqui nos interessa. Noel diz que em Vila Isabel o samba tem um certo feitiço (que enebria a quem o ouve), tal como o samba era entendido anteriormente, devido a sua relação inicial com a cultura negra, particularmente com o candomblé. Porém, é um feitiço diferente, é um feitiço decente, o que de antemão já denota uma preocupação com a aceitação social (e comercial) do samba. Tal como em Rapaz Folgado, onde Noel deixa o malandro nu, decompondo o seu aspecto exterior (a navalha, o lenço no pescoço, o tamanco), em Feitiço da Vila o samba também passa a ser desprovido de suas significações exteriores. Continuando a ser feitiço, o samba, entretanto, não carrega mais a sua significação religiosa oriunda candomblé: "a vela, a farofa e o vintém". Noel, deste modo, torna consciente o samba de seu novo sentido social e simbólico numa sociedade em franca modernização capitalista. O samba agora é um produto musical - passível de ser vendido em forma de disco e veiculado nas rádios -, e a atividade do (compositor) sambista, que ele tanto cuidou em sua polêmica com Wilson, é agora uma atividade profissional. Com Noel Rosa pode-se dizer que o samba tornou-se consciente de seu aspecto de música popular, em seu sentido urbano e moderno. 

JOSÉ ADRIANO FENERICK é autor do livro Nem do Morro, Nem da Cidade: as transformações do samba e a indústria cultural 1920-1945 (São Paulo, Annablume/Fapesp, 2005).