terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Samba Paulista: do Bumbo à latinha de graxa





Demoraram pelo menos três séculos para que o batuque de Pirapora amanhecesse na Barra Funda, no Bexiga e na Baixada do Glicério, três dos principais redutos dos ex-escravos vindos do interior de São Paulo; aí veio o ”progresso” e o bumbo deu lugar para o metal da frigideira e da latinha


Samba rural, samba de bumbo, samba de lenço, jongo, samba de umbigada, samba campineiro, pernada, tiririca, batuque, tambu, Samba de Pirapora. É difícil saber até onde estes termos designam uma unidade ou uma diversidade. Improvável também é designar uma maternidade ou paternidade. Foi um somado de influências, que aí constam questões econômicas, políticas, religiosas e imigratórias. Todas elas responsáveis pela levada diferente do samba criado em São Paulo.

A importação de escravos do nordeste brasileiro para trabalhar nas lavouras de café no século XVIII, por exemplo, é vista como fundamental para o nascimento de um samba paulista. Foi desta migração que provavelmente vieram também as tradições originárias de Angola, como a umbigada ao som de tambores, que tinha como propósito homenagear a deusa da fertilidade.

Estima-se que 73% dos africanos que vieram ao Brasil são originários do que hoje é Angola, país da costa atlântica da África. Trazido pelos angolanos, o jongo (foto acima) e a umbigada (samba, em linguagem quimbundo) foram essenciais e trouxeram um tempero polêmico. Eram rituais de cunho religioso, fundados no ritmo e que, sobretudo na umbigada, carregavam uma estética sensual e ‘’imoral’’, na visão dos brancos europeus católicos.


Germano Mathias: Samba paulistano se caracteriza 

pelo uso de objetos do dia-dia urbano, como a latinha de graxa


Um dos primeiros estudiosos dedicados ao samba paulista foi o escritor Mario de Andrade. Ele, nos anos 30, publicou o artigo ‘’O samba rural paulista’’ e de certa forma trouxe à tona uma necessidade: conhecer melhor as origens daqueles ritos animados, cercados por gente feliz e que eram vistos com grandes reservas pelos fazendeiros e pela igreja católica. Abaixo, algumas impressões do autor de Macunaíma:

“Na terminologia dos negros que observei, a palavra samba tanto designa todas as danças da noite como cada uma delas em particular. Tanto se diz ‘ontem o samba esteve melhor’ como ‘agora sou eu que tiro o samba’. A palavra ainda designa o grupo associado pra dançar sambas. ‘O dono-do-samba de São Paulo me falou que este ano o samba de Campinas não vem’’. E outros acrescentaram que ‘a qualquer momento devia chegar a Pirapora o samba de Sorocaba’. Em 1933 os negros falavam indiferentemente samba ou batuque”.

Foi neste artigo que Mário de Andrade cunhou o termo Samba Rural. Na avaliação dele, as características desta manifestação rítmica tinham relações evidentes com o ambiente criado pelas fazendas, na vinda forçada de escravos africanos, cheios de rituais, para lida nas lavouras de cana de açúcar e café em São Paulo.


Do Samba Rural para o Samba Urbano

Um terreno de horizonte largo, cortado por uma linha de trem de trabalho intenso. São homens negros e fortes, ardidos pelo sol, mas felizes. São felizes e dançam, batem palmas, usam chapéus de palha e repetem cânticos arrastados e com uma leve tristeza. É o Largo da Banana, na Barra Funda, estamos no início do século XX. Era este o habitat dos costumes e das tradições da negraiada que, alegre e liberta das correntes da escravidão bailava no batuque improvisado do samba de bumbo e no gingado do caterete.

Com o suposto fim da escravidão no fim do século XIX, os negros migraram para a cidade de São Paulo em busca de oportunidades de trabalho. Encontraram uma cidade ainda sem os requintes industriais que mais tarde dariam a tônica nas relações sociais. Eles se alojaram principalmente nos bairros da Barra Funda, Bexiga e na Baixada do Glicério, mas o principal conglomerado ocorrera no Largo da Banana, local que hoje ocupado pelo Memorial da América Latina.


Largo da Banana na Barra Funda do início do século XX, 

palco de rodas de Tiririca e de batuque trazidos pelos ex-escravos


Rodas de tiririca (espécie de capoeira), cantorias de jongo parecidas com desafios de repente e rodas de samba eram comuns na paisagem destes bairros. De escravos, estes negros tornaram-se mão de obra de baixa especialização: carregadores, engraxates e entregadores de marmita.


A Influência Italiana no Samba Paulista

Junto aos negros, ex-escravos, se juntaram nos bairros da Barra Funda e principalmente no Bexiga italianos recém-imigrados que encontraram em São Paulo oportunidades de trabalho no comércio e posteriormente na indústria.

Desta mistura, nomes como Adoniran Barbosa e Germano Mathias seriam vistos mais tarde como símbolos do samba paulista, cujas grandes particularidades são o jeito italianado, a crítica às mudanças provocadas pelo progresso industrial e as referências diretas ao samba bumbo praticado pelos escravos.


Adoniran Barbosa: muito mais que um sambista, este foi um

dos personagens mais importantes da vida paulistana do século XX


É interessante perceber que o samba paulista urbano tem como característica uma certa melancolia – boa parte da harmonia dos sambas são construídas por acordes menores. Ressaltado pelo bumbo grave e evidente, temas relacionados às mudanças provocadas pelo progresso industrial, temas sociais, críticas políticas e aos costumes da sociedade paulistana do século XX.

É fato que o samba paulista nunca fez questão de ser alegre e festeiro, característica que pode ter gerado a frase ‘’São Paulo é o túmulo do samba’’, infeliz e precipitada análise realizada pelo poeta carioca Vinícius de Morais.

Samba de Bumbo

Pesquisas indicam que o primeiro registro da existência do samba de bumbo data de 1856. O documento encontrado fala sobre uma festa junina realizada em uma fazenda de café em Piracicaba. Por ter um caráter marginal, pouco ou quase nada ficou documentado sobre este tipo de cerimônia. Ficaram mesmo os ‘’causos’’, os filhos dos filhos dos protagonistas, e graça a lembrança dessas gentes a história cada vez torna-se mais clara.

Depoimentos indicam que o samba em Pirapora do Bom Jesus, município com pouco mais de 12 mil habitantes localizado há 54 quilômetros na região oeste da Grande São Paulo, acontecia já no fim do século XIX. Há indícios de que pessoas de cidades como Capivari, Itu, Tietê, Jundiaí e Campinas, e também do estado de Minas Gerais visitavam a localidade por conta do samba.

Pirapora é considerada como o grande pólo aglutinador do samba de bumbo paulista. O palco eram as senzalas e os terreiros e a dança era marcada pelo som de grandes bumbões, lapidados com fogo nos troncos de árvores enormes. Ao deixar o tronco oco, ele era tapado com couro de animais. O resultado de todo esse artesanato era a produção de uma batida grave e profunda, marca do samba paulista e que pode ser ouvida, por exemplo, nas músicas de Adoniran Barbosa, Geraldo Filme e Demônios da Garoa. Fora isso, o timbre grave ainda é marca perceptível nas baterias das escolas de samba paulistanas.

Estes tipos de percussão entoavam também as rodas de Jongo, uma dança religiosa e noturna, realizada geralmente no meio do mato. Os tambores jongueiros eram chamados de Caxambu ou Candongueiro.

É provável que tenha sido da fusão do samba de roda nordestino, trazido pelos jovens escravos vindos do Nordeste, com a dança do jongo que o samba de bumbo tenha sido criado. A inserção da viola trazida pelos portugueses deu liga a este caldeirão rítmico. Campinas pode ter sido o local de origem desta fusão de rituais e tradições. A cidade seria , nos anos 20 e 30 do século passado, uma força nas disputas com Pirapora do Bom Jesus pela hegemonia do samba.


O Apartheid de Pirapora

A tradição negra dos escravos africanos, mantida e enriquecida pela influência européia, não era vista com bons olhos pela igreja católica. Em Pirapora do Bom Jesus o samba era entendido como atividade profana, ou seja, contra a moral católica que sempre esteve profundamente ligada à cultura do município. Por isso, o culto do samba foi duramente reprimido, mas mesmo assim era realizado, de forma clandestina, na mesma época em que as festividades do ‘’Bom Jesus’’, nos meses de agosto.

Dona Mria Esther: A matriarca do Samba Paulista

Hoje, longe do carnaval de sambódromo, Dona Maria Esther carrega 84 anos de vida e toda uma tradição secular do samba de bumbo paulista. A idade não castiga - parece moleca, pula e gira enquanto canta. Na mocidade sofreu bastante, tomava ‘’surrinhas’’ de vara de marmelo do pai português por freqüentar rodas de samba, mas hoje importa mesmo é que ela venceu.


Dona Maria Esther, 84: patrimonio cultural e história viva do samba paulista


Para Dona Esther, como é conhecida, “a idade não regula, o que regula é o rebolado”. Nos anos 40, ela foi uma das fundadoras do Grupo Samba de Roda de Pirapora, iniciativa que mantém até hoje. Ela fez mais também. Da colaboração dela, São Paulo teve a primeira escola de samba, a Lavapés, dez anos antes.

Das dificuldades ela lembra também das espiadas que dava no barracão em que os negros dançavam samba. Até então, não era permitida a entrada de brancos,mas Dona Maria Esther soube romper esta barreira. De acordo com ela, de tanto tomar surras de vara de marmelo os sambistas aceitaram a sua entrada nas animadas rodas por piedade.

Ser mulher e branca no meio de um ritual exclusivo dos negros foi motivo de muitos olhares de lado. Foi dali que ela colecionou um casamento e cerca de outros 50 casos amorosos, de acordo com sua contabilidade.


Geraldo Filme

Um desses entregadores de marmita era um negrinho vindo do interior paulista, que trouxe do convívio com o avô a tradição da cantoria dos escravos. Era ele Geraldo Filme, que só tardiamente, após sua morte em 1995, seria lembrado como um dos sambistas fundamentais para o entendimento do samba paulista.

Sua mãe tinha uma pensão nos Campos Elíseos, bairro paulistano, e fazia marmitas. Cabia ao menino Geraldo entregar para toda a região, inclusive para a Barra Funda, bairro vizinho. Durante a vida, foi figura influente por entre as escolas de samba, sobretudo junto a Vai-Vai, escola do bairro do Bexiga.


Geraldo Filme: batuques, cantorias e violas
dedilhadas emoldurando casos do cotidiano paulista

Ficaram poucos registros fonográficos. Em 81, Geraldo gravou seu primeiro e único álbum. Apesar da pequena discografia, ele pôde resgatar do ostracismo parte de todo o lastro cultural deixado pelo samba de bumbo em canções como ‘’batuque de Pirapora’’ e ‘’ Tradições e Festas de Pirapora’’, que unem o timbre grave do bumbo com os ponteios da viola caipira.

Em ‘’silêncio do Bexiga”, Geraldo conta a história do sambista Pato n’ Água, morto em circustâncias ainda nebulosas envolvendo uma abordagem policial.  Tão importante quanto Adoniran Barbosa, as composições dele eram verdadeiras crônicas do cotidiano dos negros na capital paulista.


Enfim, a latinha de graxa( e a frigideira)

Engraxate nos arredores do pátio do colégio, Osvaldinho da Cuíca chamava os clientes batucando na latinha de graxa. A cuíca é o instrumento que lhe valeu o apelido, porém, ele ficou mais famoso por ter feito da frigideira de ferro um dos símbolos do samba paulista.

Até hoje, a escola de samba Vai-vai mantém a frigideira no samba por meio da ‘’ala das frigideiras’’ que compõe da bateria da escola.



Osvaldinho da Cuíca e marca o ritmo na frigideira:
hoje, trabalho de resgate das tradições do samba paulista
 passa pelo trabalho incansável dele

Hoje, quem ostenta uma brilhosa latinha de graxa é Germano Mathias, representante do samba sincopado. Nesta variante, é desafio para o sambista criar melodias redondas, perfeitas, com ritmo e balanço voltado para os bailes de gafieira.

Branco e morador do bairro da Casa Verde, ele é um dos principais responsáveis pela manutenção da tradição do samba paulistano. Diferente de Adoniran Barbosa, por exemplo, seus sambas são alegres, carregam um bom humor e uma irreverência que contrabalança com o protesto e com a melancolia.


E pra mostrar como anda a Barra funda...



Retirado do www.neilopes.blogger.com.br


EU VISTO ESTA CAMISA



Velha Guarda Musical do Camisa Verde e Branco


Não vou dizer que São Paulo é o “berço”, porque o samba, como é conhecido hoje, formatou-se no Rio, no longo eixo Praça Onze-Estácio-Osvaldo Cruz, depois de ocorrer sincronicamente em vários pontos do país, inclusive em terras paulistanas, desde pelo menos o século 19. Mas digo veementemente que o preconceito de uma certa intelectualidade litorânea carioca contra o samba paulista sempre foi uma rematada besteira. Que o digam, por exemplo, Jangada, Talismã, Sílvio Modesto, Murilão e os primeiros Originais do Samba, grandes artistas cariocas que acolheram e foram acolhidos pelo samba de São Paulo há muito tempo. Que se evoquem, também, a cumplicidade entre Padeirinho da Mangueira e Germano Matias; e a afinidade histórica entre o Largo da Banana e a Praça Onze – só para citar dois ou três exemplos. 

Diferenças, se houve e há, estão nas escolas de samba. Que, no Rio, deixaram há quase 30 anos, de ser expressão do poder e da cultura das comunidades negras, para serem a milionária atração turística que hoje são. E que em São Paulo, em sua maioria, ainda fitam, cautelosas, a bifurcação do caminho. 

Mas acima do mercado paira o samba, enquanto gênero musical e forma de sociabilidade. E isso fica evidente no recém-lançado CD “Canto para Viver”, belo e comovente registro, em sua qualidade musical e sua hostoricidade – o talento e o companheirismo de compositores e intérpretes da Velha Guarda da Camisa Verde e Branco realçado por músicos exponenciais e amigos como Edmilson Capeluppi, Luizinho Sete Cordas e a “família” Quinteto em Branco e Preto – cumprindo a função de mostrar que samba é samba e escola é escola. 

Isso, eu digo na condição de membro da “Irmandade dos Carmelitas Descalços”, irmão pobre que sou do produtor Carmo Lima. E de sambista que veste com orgulho a “Camisa” recebida nos anos 90, juntamente com o parceiro Wilson Moreira, como membro honorário da ala de compositores da querida verde e branco da Barra Funda. 

(foto: Andréa de Valentim)