Da escola ao banquinho
As escolas de samba vão levar para o grande público a música que então se fazia nos redutos pobres dos morros e subúrbios. Com suas orquestras (à semelhança dos ranchos, mas sem os caros instrumentos de sopro) de atabaques, surdos, cuícas, tamborins e pandeiros, as escolas vieram mostrar para as classes de elite a riqueza musical escondida nos redutos do samba, numa cadência menos “batida” que a do partido alto tradicional (propícia para a execução "em roda"), mais cantável, mais marchável (própria para o desfile, o cortejo). A partir dos últimos anos da década de 20, em pouco tempo o desfile das escolas de samba ganhou o “status” de principal e mais importante acontecimento do carnaval. A pioneira foi a Deixa Falar, da região do Estácio, conhecida como berço das escolas de samba. Depois seguiram-se Estação Primeira, do Morro da Mangueira e Vai Como Pode, de Oswaldo Cruz, que depois mudou seu nome para Portela. Os compositores ligados às mais importantes escolas como Cartola (Mangueira), Paulo da Portela (Vai Como Pode) e Ismael Silva (Deixa Falar) asumiram grande evidência. Ante o poder avassalador daquela música que vinha dos morros, a cultura oficial não poderia ficar como mera espectadora. Logo tratou-se de organizar os desfiles, tornar oficiais os concursos. Surgiram as colunas especializadas na imprensa, os grandes jornais chegaram a patrocinar e organizar desfiles. E o poder estatal, apercebendo-se da grande força criativa e mobilizadora desencadeada pelas escolas de samba nos dias de carnaval tratou logo de dar o seu jeito: se não podemos proibir, se não dá pra impedir, vamos organizar, disciplinar, normatizar. Assim é que a prefeitura do então Distrito Federal definia os dias de desfiles, locais, os temas permitidos nos enredos, a censura às letras dos sambas etc. Ao final da década de 30, dez anos após seu surgimento, as escolas de samba já estavam definitivamente incorporadas à cultura oficial da cidade do Rio de Janeiro. E vemos, então, um segundo momento onde os elementos genuínos da cultura do samba sofrem influências externas ao seu meio, de forma a abrandar-lhe o ímpeto criativo, a mobilização das energias que proporcionava.
Não só o Estado, mas a indústria do entretenimento, então nos primórdios, soube reconhecer essa qualidade musical e as possibilidades que se abriam ante o grande desenvolvimento de um importante meio de difusão musical no início dos anos 30: o rádio. É assim que pela primeira vez, em 1929 chega ao disco, com mais de uma década de atraso, o som da percussão do autêntico samba, na gravação de “Na Pavuna”, de Almirante e Homero Dornelas, na voz do primeiro. E a partir daí, pelo disco e pelo rádio, a sonoridade da batucada do samba incorporou-se ao gosto musical do povo carioca, inicialmente, e de todo o Brasil, em seguida, principalmente a partir do surgimento da Rádio Nacional, cobrindo todo o território brasileiro, a partir de 1936. Os cantores de sucesso iam colher junto aos morros as produções de seus compositores para serem levadas ao disco. O ritmo dos batuques parecia mesmo traduzir a alma da sociedade carioca e brasileira, formada no encontro das raças e das culturas. E o samba falava não mais dos amores impossíveis das canções líricas que se gravavam até então. Falava da falta de trabalho, do pão caro, dos encontros e desencontros amorosos da vida da gente de verdade, do carnaval, da malandragem e da boemia. Em pouco tempo tornou-se a expressão mais autêntica da voz do povo brasileiro. As maiores figuras desse período serão Wilson Batista e Noel Rosa, e um pouco mais adiante Geraldo Pereira e Ataulfo Alves.
A força do samba difundiu-se de tal forma que a ditadura do Estado Novo tratou, a partir do final da década de 30, de desestimular e censurar os sambas que falavam da malandragem e da vida boêmia, incentivando um samba mais “enquadrado” na temática, de exaltação das grandes qualidades da pátria brasileira. É assim que a década de 40 inicia-se com o auge dos chamados sambas-exaltação, dos quais o mais famoso é “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Na passagem dos 40 para os 50, o samba iria parar no cinema, ficar conhecido no mundo inteiro como ritmo nacional brasileiro por excelência, na figura estilizada da “baiana” Carmem Miranda, com bananas e abacaxis na cabeça. Mas os rádios e os toca-discos quase não mais o tocavam, à exceção da época de carnaval, dominados pela onda da música americana das “big bands” e das trilhas sonoras de Hollywood. Nos anos cinqüenta, a voz dos morros pareceria estar calada, assistindo primeiramente ao domínio dos chamados sambas-canção, gênero estilizado que privilegiava a orquestração em vez da batucada, as letras românticas e os cantores de vozeirão, em vez dos sambistas de divisão leve e ágil e os temas quotidianos. Posteriormente, surge a bossa nova, impondo ao samba uma esquematização e simplificação rítmica*, uma incrementação harmônica pelo uso de acordes dissonantes, em parte por influência do jazz americano, e uma completa mudança temática. Não há mais lugar para a dureza, para a mulher que nos abandonou e pôs fogo na casa, para a exaltação da vida vadia. Agora, só barquinhos passeando ao pôr-do-sol, banquinhos e violões, tardes olhando o Cristo Redentor da janela...
Parte III - Resistência
Mas o samba é resistência, e como erva forte viceja por entre as frestas do cimento com que tentam lhe sufocar. E é na década de 60, quando a classe média experimenta um forte retrocesso nos espaços públicos de manifestação artística, com o teatro e a música popular sofrendo forte censura a partir do golpe de estado de 64, que o mundo do samba passa a ser revisitado pela cultura oficial. Artistas, intelectuais, jornalistas etc. começam a encontrar nas escolas de samba um espaço de expressão cultural genuína, forte, criativa, que fala da vida verdadeira do povo, seus sofrimentos e alegrias. O samba volta à agenda cultural brasileira, com o surgimento de redutos como o restaurante Zicartola, e o sucesso de espetáculos como o Opinião, com a presença de Zé Ketti, figura emblemática do período. Essa reaproximação vai gerar bons frutos como a revelação para o grande público, em rádio, disco e televisão, de sambistas do porte de Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Candeia, Elton Medeiros, Martinho da Vila, o paulista Germano Mathias, além da redescoberta de Cartola e Ismael Silva, por exemplo. Por outro lado, o ambiente das escolas vai sofrer uma influência decisiva dos padrões estéticos das classes dominantes. Os elementos visuais, alegorias e fantasias, tornam-se os mais importantes nos desfiles. Os sambas cadenciados, de letras longas e instrutivas, próprios para o desfile no qual se procurava contar uma história, vão sendo substituídos pelos refrões fáceis, de andamento mais acelerado, para empolgar e serem cantados e dançados também nos salões, pela gente desacostumada da difícil arte de dançar os passos do samba. E assim, por conseqüência, o passista da escola, o compositor e a pastora vão perdendo espaço para figurinistas, carnavalescos e destaques.
Esse processo vai gerar uma forte contradição a partir da década de 70. De um lado, o samba ganha grande notoriedade nos meios de comunicação, através de uma vertente que posteriormente vai ser conhecida como “sambão jóia”, cujas figuras expressivas são Luiz Ayrão, Antônio Carlos e Jocaffi, Originais do Samba. Ao mesmo tempo, importantíssimos compositores e intérpretes ligados à melhor tradição do samba surgem ou se firmam: Nei Lopes, Wilson Moreira, Beth Carvalho, Clara Nunes, Roberto Ribeiro, Alcione.
Alguns compositores ligados às origens das escolas começam a perceber que estas não mais se configuram em espaços onde o sambista pode expressar a sua arte, representativa da sua visão de mundo, sua cultura e seus valores. Desfaz-se o que era espaço para afirmação da identidade da cultura popular, da singularidade e expressividade de cada componente, governado pelas “regras da arte”, onde é maior quem tem mais talento, quem dança, canta, compõe ou costura melhor; quem é líder pela sua postura e papel dentro da vida da comunidade. O espaço das escolas passa a ser norteado pela mesmo lógica do dinheiro e do poder que rege todas as relações dentro da sociedade capitalista. Em 1975 o grande Antônio Candeia Filho afasta-se da Portela, endereçando ao seu presidente uma carta com críticas, análises e sugestões, que assim começava:
“Escola de samba é Povo em sua
manifestação mais autêntica! Quando se submete
a influências externas, a escola de samba deixa de
representar a cultura de nosso povo.”
(apud Vargens, op. cit. – p. 67)
No mesmo ano, junto com compositores importantes como Wilson Moreira, Candeia funda a Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, um marco na história da resistência do samba enquanto expressão cultural consciente e engajada. Ao grupo original rapidamente juntam-se grandes figuras do samba, como Nei Lopes, Martinho da Vila, Paulinho da Viola entre inúmeros outros. A Quilombo procurou sempre diferenciar-se das escolas de samba “mercantilizadas” (“Super-escolas-de-samba S/A”, como mais tarde diria um conhecido samba-enredo de Aloísio Machado e Beto sem Braço, campeão do carnaval de 1982 pelo Império Serrano), desde a forma de escolha dos enredos e sambas, até a cadência e os locais de desfile, nunca aceitando sujeitar-se aos concursos oficiais. Mas mais que isso, em seu terreiro recuperou-se a prática das danças afro-brasileiras como o jongo, a capoeira e o caxambu, cultivou-se outra vez o samba de terreiro como expressão fundamental da riqueza musical do samba, organizou-se a prática da assistência social à comunidade.
Fruto indireto da portentosa árvore da Quilombo foi o surgimento, na virada dos anos 70 para 80, do movimento originado a partir da quadra do bloco carnavalesco Cacique de Ramos. À sombra de uma portentosa tamarineira, compositores talentosos como Almir Guineto, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila e Arlindo Cruz revigoraram a tradição um tanto abandonada do partido alto, introduziram novos instrumentos como o banjo e o repique de mão, conseguindo transpor para o disco e os meios de comunicação o espírito dos tradicionais pagodes de fundo de quintal. Na esteira desses pioneiros, um sem número de grupos de samba surgiu, muitas vezes sem a necessária competência musical, incentivados pela grande indústria fonográfica (aliás, a prática é comum: surgido um gênero de sucesso, por mérito ou por imposição fabricada, explora-se aquela fórmula musical à exaustão, na repetição de uma lógica capitalista rasteira que, buscando diminuir custos pela massificação da produção em série, trata a cultura de um povo como produção de salsichas), levando a uma overdose que colocou o samba em relativo ostracismo por quase uma década, pondo fim à chamada primeira geração do pagode, da qual sobreviveram afortunadamente os talentos incontestes. Nesta lacuna, surgiu e começou a proliferar uma forma deturpada de executar o samba, com letras “românticas” de baixa qualidade, melodias fáceis, descaracterização completa dos elementos rítmicos e formação instrumental do samba tradicional, a que se deu, de maneira completamente imprópria, o nome de “pagode”.
Mais um teste para o samba. Agora massacrado pela massificação da mesmice e da pobreza musical, quando não da quase “pornografia sonora”, o samba autêntico e de qualidade, que nunca morreu ou fraquejou, pegou o atalho que na segunda metade da década passada possibilitou o barateamento dos custos de produção fonográfica e o surgimento de meios de comunicação alternativos como a Internet, e voltou a se afirmar e ocupar os espaços que são seus por direito. É assim que atualmente assistimos a um belíssimo momento, com os mestres veteranos produzindo como novatos e os novos talentos buscando seus espaços na trilha das lições certeiras da tradição. As rodas de samba proliferam por todo o Brasil, muitos discos são gravados, mais e mais programas de rádio e televisão dão espaço ao verdadeiro e bom samba. Muito ainda há que ser feito, é claro, no sentido de democratizar-se os meios de distribuição de discos e de difusão pelos veículos de massa, ainda dominados pela lógica estrita dos lucros dos grandes conglomerados capitalistas.
Importa, em conclusão, não esquecermos que o samba é um dos traços mais autênticos e genuínos da cultura brasileira. Forma de expressão musical essencialmente negra em suas matrizes, símbolo da contribuição africana na formação da nação brasileira, e que ao mesmo tempo traduz como nenhuma outra os traços mestiços desse povo que se forma do encontro de três raças. O samba espelha de maneira maravilhosa a incorporação dos principais legados culturais da africanidade para a identidade brasileira, num exemplo portentoso de afirmação e síntese dialética na construção dos traços marcantes da face nacional. O samba, assim, é mais que um gênero musical, uma dança ou uma festa. Representa verdadeiramente uma cultura, um modo de ser, de se comportar, ver o mundo, interpretá-lo e reexprimí-lo.
A cultura do samba engendra uma forma particularmente brasileira de construção social. Nela prima a singularidade do indivíduo e de sua expressão criativa, enquanto na sociedade capitalista o indivíduo é uma parte desqualifiacada de uma massa informe. O sambista é sujeito da história, quando constrói seu espaço de sociabilidade, de integração e de expressão singulares a partir da prática do canto, da dança, da poesia, da crítica. O indivíduo na sociedade capitalista está sujeito às regras preestabelecidas que normatizam os espaços de integração e socialização, sobre as quais ele não pode influir. O que pode parecer mera teoria, transforma-se em vivência: quem participa de um samba verdadeiro pode experimentar, na prática, uma forma de socialização que rejeita e reinventa as regras da sociedade capitalista; pode experimentar uma das mais belas formas de funcionamento de uma estrutura social sem classes, sem o predomínio da lógica abstrata e embrutecedora do dinheiro e do poder.
Por isso a história do samba, como a de outras manifestações autênticas da cultura dos povos, é uma tensão dialética constante entre a afirmação da identidade popular e a reação das super-estruturas do capitalismo. Ora pela repressão, ora pela apropriação; seja pela imposição de elementos estranhos externos, seja pela condenação ao esquecimento, seja pela cooptação. Acredito, verdadeiramente, que sempre que um surdo bater a marcação, um tamborim fizer o contraponto, um cavaco der um tom e o pandeiro rufar suas platinelas, a chama da resistência ali estará acesa.
Bibliografia básica:
Moura, Roberto – Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro, RJ, Funarte 1983
Lopes, Nei – Sambeabá – O Samba que não se aprende na escola – RJ, Casa da Palavra/Folha Seca, 2003-11-18
Tinhorão, José Ramos – História Social da Música Popular Brasileira – São Paulo, Ed. 34, 1998
- Música Popular: um tema em debate – São Paulo, Ed.34, 1997
Vargens, João Batista M. - Candeia – Luz da Inspiração, Rio de Janeiro, Funarte, 1987
Cabral, Sérgio – As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, RJ, Lumiar, 1996
* Nota necessária: antes que me crucifiquem, como se pode ler na introdução geral à primeira parte deste texto, trata-se de uma abordagem superficial e dirigida a iniciantes leigos. As simplificações e generalizações, assim, são inevitáveis. Então, em primeiro lugar, não era intenção discutir a bossa nova. Em segundo, não cabia nos estreitos limites do texto em questão tratar, por exemplo, a discussão de uma questão rítmica de natureza mais técnica, mais sutil, qual seja a radicalização da síncopa que predominou no padrão estético que a bossa nova foi construindo. Muito menos se essa padronização constitui-se verdadeiramente em simplificação ou não, conceito que tenho, mas deixo aqui apenas sugerido. Exclui-se desta generalização, outrossim, por óbvio, a polirritmia genialmente pessoal de João Gilberto.